As melhores leituras de 22
#31 -- uma retrospectiva literária com autoras latinoamericanas; a experiência coletiva de ler a escritora da vez; e a costumeira declaração aos clubes de leitura
Carmela Soprano teve um bom ano de leituras nos idos de 1999.
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Em 2022 voltei a frequentar clubes de leitura no formato presencial. Sair de casa pelo menos uma vez por mês pra passar algumas horas conversando sobre literatura com quem também está com vontade de falar sobre livros (!) é um momento muito aguardado na correria de sempre. Passei um mês inteirinho na casa da minha mãe, em São Luís, e quase não li nada. Depois tirei férias e fui na Flip pela primeira vez.
Desde o início do ano, coloquei na cabeça que conheceria autoras mexicanas e, no fim das contas, acabou que só li três: Fernanda Melchor, Guadalupe Nettel e Jazmina Barrera. Mas acabei lendo bastante coisa da América Latina. Chile foi o segundo país mais lido, atrás do Brasil.
A melhor escritora lida no ano foi, sem dúvida, Camila Sosa Villada.
Até o momento, li livros de catorze países diferentes. Brasil, Chile, França, México, Estados Unidos, Argentina, Coreia do Sul, Equador, Japão, República Tcheca, Escócia, Hungria, Itália e Moçambique.
A seguir, um pouco sobre as leituras mais marcantes do ano:
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A porta, Magda Szabó (tradução de Edith Elek).
Uma história sobre a relação entre uma escritora e sua governanta, descrita praticamente com uma brutamontes. E também sobre os erros que cometemos na vida e a forma com que nos lembramos desses mesmos erros.
Emerenc, a governanta, é uma personagem que não me sai da cabeça. Se eu olhar para fora da janela e ver uma coberta de neve do inverno húngaro, posso imaginar Emerenc limpando as calçadas do vilarejo.
Esse foi um dos livros que não teria lido se não fosse indicação do Leia Mulheres daqui de Curitiba. Reforço como participar desses clubes é importante (segue renovação da minha declaração de amor anual), ainda mais com a curadoria da pesquisadora Emanuela Siqueira (também conhecida como autora recorrente de textos de capa do Suplemento Pernambuco).
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Poeta chileno, Alejandro Zambra
Faz dez anos que comecei a ler Zambra. Li Bonsái enquanto morava Santiago, em 2012. O que me reconectou com o autor foi um curso sobre a literatura dos filhos dos perpetradores de ditaduras latino-americanas. O livro abordado nas aulas foi Facsímil, e lembrei como gostava do Zambra. Decidi encarar o audiolivro de mais de onze horas quando vi que era narrado pelo próprio autor.
Nem sempre consigo dar tanta atenção aos livros que escuto em áudio. Com esse título, eu dava o play e, apesar dos fones de ouvido baratos, era como entrar numa cabine à prova de som, ouvindo apenas a narração levemente monótona de quem conhecia bem aquele texto. Sem afetações.
Poeta chileno tem tudo o que eu não gosto num livro de ficção: personagens escritores, personagens jornalistas, personagens gringos fora dos Estados Unidos. E, mesmo assim, se tornou um dos preferidos.
Bônus: Quando descobri que Zambra é casado com a escritora Jazmina Barrera, fui correndo ouvir o audiolivro do romance Puto de cruz (infelizmente narrado por outra pessoa). Poeta chileno e Punto de cruz se complementam nos temas sobre relações para além da nossa família direta, a literatura e esse sair do Chile para os Estados Unidos e para a Europa, respectivamente.
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O combo Annie Ernaux: O acontecimento + O jovem + O lugar (tradução de Isadora de Araújo Pontes, do primeiro, e Marília Garcia, dos dois últimos).
Numa praia em Trindade, no estado do Rio de Janeiro, lá estava eu numa tarde nublada, debaixo de chuvisco, sendo picada por mosquitos. Comecei e terminei de ler O lugar ali mesmo. Olhei ao redor e reparei em outra pessoa que também lia Annie Ernaux na beira do mar, depois da Flip. Dá pra reconhecer de longe as capas da editora Fósforo, em tons de roxo. A experiência coletiva de ler uma autora que está em alta é bom demais, vai dizer.
O meu preferido ainda é O acontecimento. Mas a obra da Annie, com seus livros curtos, é mesmo um esquema de pirâmide. Você termina de ler um e já quer ler o próximo. A franqueza na escrita de não ficção é algo que me interessa.
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Diorama, Carol Bensimon
Vez em quando tudo o que uma leitora quer é uma história que te deixa realmente com vontade de saber o que vai acontecer no final. Carol Bensimon uniu duas de suas cismas (um certo crime na classe política do Rio Grande do Sul no final dos anos 80 e o universo da taxidermia) pra escrever esse livro sobre animais e traumas familiares.
A protagonista, Cecília, aparece como narradora em três momentos que se complementam: criança, sem entender muita coisa, quando o pai é acusado de assassinato; adulta, toda confusa, ao topar rever o pai após um problema de saúde; e, de uma forma mais fria, ao longo de toda a vida, como a colecionadora de informações sobre o crime do pai.
Prefiro não abrir o jogo, mas o conteúdo sáfico & gay desse livro surpreende, principalmente para quem não conhece o Caso Daudt, que inspirou o crime da história. Deixe pra procurar depois de ler.
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Las malas + Soy tonta por quererte, Camila Sosa Villada
O parque das irmãs magníficas (Las malas) é um livro de ficção científica de travesti pobre. Essas são palavras da autora, exausta do rótulo de realismo mágico. Em entrevistas, Camila consegue se desvencilhar dessa categoria com classe, com a gargalhada que às vezes usa pra encerrar frases.
O livro conta a história de um grupo de travestis que tem como elo o Parque Sarmiento, na cidade de Córdoba, Argentina. A narradora é uma dessas travestis. As outras vêm e vão da trama, como as pessoas que entram e saem de nossas vidas. Tudo começa quando elas encontram um bebê chorando no parque, adotado pela mais velha do grupo, a Tía Encarna.
O bebê abandonado é dado como filho da Santa Defunta Correa, uma figura religiosa que morre em circunstâncias trágicas e deixa um filho órfão. La Difunta Correa aparece também no livro de contos lançado agora em 2022.
Sou uma tola por te querer começa com um conto abertamente autobiográfico que funciona como uma introdução. As histórias seguintes vão se distanciando do universo do Parque Sarmiento até ganhar vida própria, atingindo o ápice no conto sobre freiras sorridentes e cachorros que causam acidentes em estradas estaduais.
Aguardo, com muita expectativa, o desenrolar da carreira de Camila Sosa Villada como escritora. Que venham os próximos livros.
Três releituras
A metamorfose, Franz Kafka (tradução de Modesto Carone). Interessante reler num contexto de vida trabalhadora e não mais como estudante de jornalismo sonhando com o mundo (um clichê péssimo e infelizmente real).
Dias de abandono, Elena Ferrante (tradução de Francesca Cricelli). Que me rendeu uma reflexão sobre como revisar livros pós-entendimento como lésbica é uma forma de ver como mudei nos últimos anos.
Úrsula, Maria Firmina dos Reis. Fico besta com esse livro. Costumo ler mais contemporâneos. Maria Firmina me pega de jeito.
Menções honrosas
La piedra de la locura, o que eu mais gostei de Benjamin Labatut.
Temporada de huracanes. Não sei o que houve entre mim e Fernanda Melchor. Comecei a ler Paradais, o seu livro mais recente, e acabei abandonando.
Ninguém morre sem ser anunciado. Paula Gomes, com o humor que aparece na newsletter Refrescos, num livro sobre uma protagonista que irá morrer com uma machadada na cabeça.
Voyager, um ensaio de Nona Fernández sobre memória familiar, ditadura no Chile e observação de estrelas.
Niketche: uma história de poligamia. É aquela coisa, né. Tem que ler Paulina Chiziane.
Textos sobre literatura aqui na doses de tiquira
O jeitinho Isabel Allende: atualização das minhas leituras de Isabel Allende (também conhecida como minha escritora preferida) depois de ler o lançamento de 2022, Violeta.
Queria menos links na internet: sobre a coletânea da Bárbara Bom Angelo dos textos publicados na newsletter Queria ser grande, mas desisti (quem sabe uma inspiração para o ano que vem).
Clube de leitura: a experiência de frequentar o mesmo clube há cinco anos já é suficiente pra render uma crônica.
A última página de Dias de abandono: para quem já leu ou não tem problema com spoilers.
Primeira vez na Flip: sim, até hoje não consigo parar de falar deste evento. Me deixa.
Dois livros sobre animais: Diorama, já mencionato na lista do ano, e Escute as feras (Nastassja Martin).
A retrospectiva das retrospectivas (os melhores livros dos últimos anos)
2021: Tambores de São Luís (Josué Montello).
2020: Hija de la fortuna (Isabel Allende).
2019: Na casa dos sonhos (Carmen Maria Machado).
2018: Aparecida (Marta Dillon).
2017: Tetralogia napolitana (Elena Ferrante).
2016: Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch).
ADOREI essa lista maravilhosa de latinas <3 E tô aqui na torcida para você transformar os textos da news em livro. Te ajudo com todas as infos possíveis \o/
Amiga! Que lista! Amei seu jeito de escrever contando também sua experiência pessoal diante de cada obra <3