A última página de Dias de abandono
#27 -- "fingi acreditar e por isso nos amamos longamente, nos dias e nos meses porvir, quietamente"; uma frase de impacto e duas releituras
Com a releitura de Dias de abandono (Elena Ferrante, tradução de Francesca Cricelli), notei que a impressão que certos livros deixaram em mim mudou bruscamente depois de me entender lésbica.
No primeiro contato com a história, eu ainda saía com homens. Senti o fundo do desespero quando li a última frase do livro. Olga, a protagonista, finge acreditar na felicidade passageira de um caso com o vizinho depois de chegar no fundo do poço com o fim de seu casamento.
Logo no começo da história, o ex-marido vai embora e passa meses sem sequer procurar os próprios filhos. O que pegou em mim foi a junção dos dois verbos: FINGIR e ACREDITAR falando de um sentimento de plenitude e alegria.
Agora eu não consigo nem me lembrar com quem eu estava saindo na época. Mas estava saindo com alguém. Voltei pra casa de tomar um chopp com esse cara e sentei pra ler umas poucas páginas antes de dormir. Estava ainda no começo do livro. Não consegui parar. Só larguei na última página, no fingir acreditar.
Tinha essa certeza de que nunca teria um relacionamento duradouro, que as amizades seriam as minhas companhias até o fim da vida. Até chegar a esse futuro, seguiria fingindo e acreditando no que aparecesse pela minha frente?
Voltei a Dias de abandono na sexta passada, a minha cópia já com páginas amareladas, me preparando para o encontro do clube Leia Mulheres de Curitiba que seria no dia seguinte. Dias de abandono é um livro pra ler em duas sentadas. A pausa deve ser guardada para quando você precisa dar um respiro entre os momentos que rompem a superfície das coisas. O momento de respiro fica a critério do leitor. Use com sabedoria. Você pode se arrepender se interromper a leitura cedo demais.
No sábado pela manhã, quando cheguei na parte do fingir acreditar, fechei o livro e dei um tempo pra sentir a mudança acontecendo. Foi-se a frustração de não conseguir ter sentimentos fortes por outra pessoa, me causando um incômodo que ainda não entendia. Na construção de tensão da história de Olga, fui relembrando quem eu era antes e o que me preocupava. A trama chega ao dia do irreal, e eu já não sou mais a mesma. O desenrolar do livro não me afeta tanto, perde força.
Passei por algo parecido depois de reler Digo te amo para todos que me fodem bem (Seane Melo). O livro de Seane te faz sentir algumas coisas: tesão (é claro), identificação, raiva, desilusão, revolta. Você ri da própria cara quando também é uma mulher se relacionando com homens. Na segunda leitura, já me relacionando com mulheres, a sensação foi de compaixão com a protagonista, que se envolve com dois ou três caras de um jeito errático.
É como pegar pra ler um trecho de um caderno antigo e se reconectar com problemas que não existem mais. O passar do tempo te ajuda a ver o momento com clareza. Isso é bom. Resgatar uma leitura marcante para um acontecimento te faz voltar para aquele passado. Só a perturbação é que não está mais lá.
saideira
- Como aquecimento para a Flip (23-27/11), comecei a ver os vídeos do Ciclo da autora homenageada. O primeiro deles é Maria Firmina dos Reis e o Cânone.
- Vai ser a minha primeira vez na Flip, então aceito dicas e um ‘oi’ de quem também estará em Paraty no finalzinho de novembro.
- Escutei o audiolivro de Quando deixamos de entender o mundo (Benjamín Labatut, autor confirmado para o evento) e não consegui me conectar muito com os capítulos, apesar de ter achado interessante toda a conversa sobre descobertas científicas, a vida desse povo que se ocupa em pensar o mundo e os grandes desastres da humanidade. Não desisti do Benjamín (afinal, ele é radicado no Chile) e comecei o audiolivro A pedra da loucura, narrado pelo próprio autor (em espanhol). Parece que vou gostar mais desse.
mais uma dose