O jeitinho Isabel Allende
#16 -- uma pausa na ordem cronológica; a atualização do ranking dos livros já lidos; ainda bem que essa mulher lança um livro novo todo ano
Todas as minhas conversas terminam em Isabel Allende. A depender do tempo, é claro. Se não cheguei lá, é porque a conversa não durou o suficiente.
Estou no processo de ler a obra da Isabel em ordem cronológica desde 2014, a partir de uma releitura de A casa dos espíritos (1982). No último texto sobre o assunto, ali no comecinho de 2020, estava lendo Filha da fortuna (1998) numa praia dos arredores de Florianópolis.
Tinha me encantado com o livro a ponto de já engatar a leitura com Retrato em sépia (2000), duas gerações depois na linhagem iniciada em Filha da fortuna. Retrato em sépia foi, na verdade, uma releitura. Esse foi um dos primeiros livros que li da Isabel, ainda na adolescência. Não gostei tanto como na primeira vez. A história parece que não se desenrola.
No ano passado, larguei de mão a ordem cronológica porque estava muito curiosa pra ler o lançamento da vez. Mulheres de minha alma (2020) é um relato sobre a influência do feminismo na vida da escritora. O velho caso de um livro que poderia ser só um ensaio. Nada de novo para quem já leu os bons livros autobiográficos da Isabel Allende (Paula e Meu país inventado). Em seguida, pulei para o livro de 2019, Largo pétalo de mar, que eu já tinha aqui em casa e acabou sendo uma das melhores leituras de 2021.
Depois, a ideia era voltar à ordem cronológica -- estou adiando há anos a leitura de uma trilogia de fantasia que a Isabel escreveu pensando nos netos (quando eles eram mais jovens). Até que foi anunciado o lançamento de um livro sobre a vida de uma mulher que nasceu durante a pandemia da gripe espanhola e morreu durante o início da alta de casos de Covid-19. Pensei que teria um vislumbre sobre o que a Isabel pensa dos nossos tempos pandêmicos. Depois eu entenderia que a minha expectativa foi uma ilusão criada pelo marketing editorial.
Violeta (2022) é um livro pra se pensar no tanto de coisa que aconteceu durante essas duas pandemias. Afinal, na primeira, a protagonista era nova demais para sentir o impacto do isolamento na capital de um país. E, na segunda, já estava vivendo no campo e tem uma morte tranquila (não relacionada ao vírus). A família não é impactada pelo corona, mas por outros eventos históricos que aconteceram durante a vida de Violeta del Valle.
Os acontecimentos que se destacam no livro são: a crise econômica de 1929 (e o impacto nesse país não nomeado que aqui vamos chamar de Chile mesmo), o verão do amor em 1967 (inclusive com parte do enredo se desenvolvendo na cidade de São Francisco), a formação da Colônia Dignidade (uma seita alemã alocada ao sul de Santiago, mais detalhes sobre ela na saideira), o grande terremoto de 1960 e, como não podia deixar de ser, a ditadura militar iniciada em 1973. Afinal, todas as conversas da Isabel Allende terminam na ditadura militar chilena, principalmente se for para usar a expressão “banho de sangue”.
Não que Violeta seja assim tão diferente de outros livros como Largo pétalo de mar (sobre a chegada no Chile de refugiados da Guerra Civil Espanhola com um navio fretado por ninguém menos que o poeta Pablo Neruda) ou mesmo Filha da Fortuna (com a descoberta de ouro na Califórnia em 1849) e Retrato em Sépia (Guerra do Pacífico). O grande evento histórico é ponto comum a muitas obras da autora.
Por mais que nem sempre os personagens tenham nomes conhecidos, eles estão sempre protagonizando a ação. Em Violeta, a diferença é que tem sempre coisa demais acontecendo. O marido da protagonista não pode ter só uma empresa de transporte aéreo. A firma tem que estar envolvida com a Revolução Cubana (!) e com mafiosos de Miami (?). Tudo acontece com os personagens de Isabel Allende.
Bem, nossas vidas de fato são influenciadas por eventos históricos. Olha só o que aconteceu com a gente nos últimos dois anos. Rapidamente, se eu for pensar num episódio da vida universitária da minha mãe pra contar numa ficção adaptada a partir da história da minha família, posso colocar mamãe na mesma cena em que o atual governador do Maranhão está discursando sobre uma pauta de esquerda no centro de convivência da universidade federal.
Complementando: nossas vidas são influenciadas por eventos históricos, e essa influência frequentemente aparece em obras ficcionais. O que me impressiona é como Isabel Allende consegue selecionar um punhado de episódios grandiosos e fazer caber na vida de seus personagens. Tratando ainda de outros temas que não aparecem na linha do tempo do Chile (ou dos Estados Unidos, onde ela mora há uns bons anos), como relacionamentos abusivos, maternidade compulsória e dependência química.
Esse jeitinho da Isabel de saber amarrar os tais episódios grandiosos é um destaque em Violeta, livro em formato de uma longa carta que a protagonista escreve ao neto para contar suas experiências de vida. Na família del Valle, era algo comum associar o nascimento de alguém à catástrofe do momento, seja ela uma pandemia ou um terremoto. A própria narradora fala sobre essa mania familiar, que também serve como um aviso de que a autora não se importa caso o enredo histórico passe um pouco do limite:
“No creo que fueran señales del destino, como pensaban mis tías, pero que en este país siempre hay calamidades, y no cuesta nada relacionarlas con cualquier suceso de la vida, desde el nacimiento hasta la muerte.”
Infelizmente, o livro perde muito de sua força depois da parte “La Pasión”, quando a protagonista entra de vez na vida adulta. A narrativa tem um tom estranhamente desapaixonado (“Cada cual es libre de narrar su vida como mejor le plazca”).
Saber que esse livro foi inspirado na mãe da Isabel, que viveu quase um século e morreu em 2018 aos 97 anos, me deixa curiosa pra ler um pouco das cartas que mãe e filha trocaram ao longo dos anos (provavelmente desde muito antes do meu nascimento).
Outra característica que diferencia Violeta das demais protagonistas da Isabel é o distanciamento com que ela fala sobre o governo socialista de Salvador Allende (com quem Violeta nem vai com a cara; a personagem ressalta, inclusive, que o homem parecia arrogante) e depois com a ditatura militar, mesmo que ela tenha ajudado na fuga do filho exilado. Violeta era uma isentona.
Escrever isso me deixa abismada com as referências gritantes da homenagem feita à cantora e compositora Violeta Parra, considerando, além do nome da protagonista, todo o contexto de vida no campo (atípico em comparação aos outros livros) e as menções a arpilleras (técnica de bordado específica utilizada como forma de expressão política). Lá pelo final da leitura, um parágrafo começa com as exatas palavras “Después de vivir un siglo”, como no verso da música “Volver a los 17”, e esse é o momento em que a leitora pensa: é, Isabel, só tu mesmo.
Isso tudo pra dizer que: caso você seja principante nessa conversa de ler Isabel Allende, não comece por Violeta.
Ranking atualizado dos livros já lidos de Isabel Allende
Paula (1994)
A casa dos espíritos (1982)
Mi país inventado (2003)
Hija de la fortuna (1998)
Largo pétalo de mar (2019)
Violeta (2022)
Retrato em sepia (2000)
El cuaderno de Maya (2011)
Cuentos de Eva Luna (1989)
Eva Luna (1987)
El plan infinito (1991)
De amor e de sombra (1984)
Afrodita (1997)
Mujeres del alma mía (2020)
#lendo como uma lésbica
Um ponto para desenvolver melhor quando retomar as leituras na ordem cronológica: Em Violeta, pela primeira vez vi um casal de mulheres vivendo juntas e tendo relevância para a história contada por Isabel Allende. A governanta que chega da Inglaterra para cuidar de uma Violeta ainda criança, depois de uns anos morando em Santiago, se envolve Teresa, uma feminista de profissão herdeira. As duas ficam juntas na maior parte do livro (a história tem duração de um século; muitos personagens morrem nesse meio tempo).
Até os livros do final dos anos 90, os personagens queer eram apenas mencionados. No máximo, vistos com preconceito por algum outro personagem de caráter conservador. Tô curiosa pra saber se esse processo de lembrar da existência de pessoas LGBT+ será gradual na cronologia ou se foi um despertar tardio no livro mais recente.
Con Teresa, descubrió el amor y pudo cultivar de a poco su sensualidad, cuya existencia no sospechaba. A los treinta y un años, era de una inocencia inusitada.
Teresa se jactaba de experimentar todo lo que se presentara, sin hacer caso de la moral o las reglas impuestas por otros. Se burlaba igual de la ley y de la religión. Le aclaró a Josephine que había tenido amores con hombres y mujeres, y consideraba la fidelidad una limitación absurda.
— Creo en el amor libre. No trates de amarrarme — le advirtió unas semanas más tarde, mientras la acariava desnuda en el diván.
Miss Taylor lo aceptó con un nudo en el pecho, sin imaginar que en la larga relación que había de unirlas nunca tendría motivo de celos porque Teresa sería la más fiel y devota de las amantes.
saideira
Colônia Dignidade: uma seita nazista no Chile é uma série documental de 2021 disponível na Netflix sobre essa seita de origem alemã que fincou raízes ao sul de Santiago e conquistou o seguinte combo: 1) ter origem nazista; 2) ser um centro de tortura para a ditadura militar de Pinochet; e 3) encobrir o abuso recorrente de crianças e adolescentes que eram separados dos pais à força.
Em seis episódios, passamos por toda a história da colônia, desde a sua origem (basta saber que o fundador fugiu da Alemanha por denúncias de pedofilia) até o seu desmonte (já depois da ditadura militar). No livro Violeta, o lugar aparece com o nome de Colônia Esperança, naquela tentativa da Isabel Allende de disfarçar que a história acontece no Chile.
Mais sobre Colônia Dignidade:
- Dignidad (2020): uma série ficcional com elenco chileno e alemão disponível na Amazon Prime. Comecei a ver antes do documentário, ainda não terminei. Até onde assisti, a trama dava mais ênfase ao processo de investigação após as denúncias de abuso de menores.
- Colonia (2015): um filme de com Emma Watson e Daniel Brühl. Definitivamente preciso ver esse.
Caí aqui de paraquedas. Estou lendo Violeta (já no final) e fiquei intrigada sobre Isabel Allende. Este é o primeiro livro dela que leio e tenho impressões parecidas com as suas. O livro é como uma linha do tempo do último século.
Mesmo assim, me empolguei para ler mais livros dela. A escrita é simples e cativante. Achei que a "jornada" da leitura vale a pena, mais que o enredo em si, pois é um livro bastante prazeroso de se ler.
Virei sua assinante.
Um beijo!