Primeira vez na flip
#29 -- a homenageada Maria Firmina; o ato de aplaudir; Annie Ernaux em três momentos; y la espectacular Camila Sosa Villada
Em setembro, fiz um passeio turístico a pé pelo centro histórico de São Luís. Passamos por cenários da memória da cidade e da vida da escritora Maria Firmina dos Reis. Passamos pela catedral onde ela foi batizada. Pelo Palácio dos Leões, sede do governo estadual, onde ela assinou o termo de posse para o um cargo de professora, para onde não quis ir numa liteira carregada por pessoas escravizadas.
E por uma antiga gráfica como a que Maria Firmina mandou imprimir o romance Úrsula com um esquema de subscrições, o financiamento coletivo do século 19. Só não caminhamos até o bairro de São Pantaleão, onde morava com a família (e mesmo bairro da Casa das Minas, local que aparece com destaque no livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves) porque o trajeto seria cruel sob o sol ludovicense do meio da tarde.
Foi mais ou menos nessa época que decidi ir para a Flip, na edição em homenagem à primeira romancista do Brasil. Tendo já lido Úrsula, retomei a imersão na obra de Maria Firmina com a versão do romance adaptada para os quadrinhos por Iramir Araújo. Escutei o livro em áudio, uma releitura em som, narrado por uma mulher com sotaque carioca. Me diverti com a dramatização de um romance de época. Comecei a ler a biografia Maria Firmina e o cotidiano de escravidão no Brasil, escrita pelo maranhense Agenor Gomes, nascido na cidade de Guimarães, onde Maria Firmina trabalhou como professora e onde está enterrada.
Úrsula é um livro que conversa muito comigo desde as primeiras linhas. Os dois parágrafos iniciais são uma descrição dos campos alagadiços da baixada maranhense, região de origem da minha família antes da mudança para São Luís. Uma descrição muito parecida ao que mamãe e minhas tias dizem dos arredores do sítio onde moraram quando criança, até o começo da década de 70. Temos uma linguagem comum.
Inclusive a tiquira é mencionada num diálogo da cena em que Antero vigia Túlio, posto numa cela a mando do comendador. Diz Antero, um velho escravizado:
na minha terra há um dia em cada semana, que se dedica à festa do fetiche, e nesse dia, como não se trabalha, a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! Lá então é vinho de palmeira mil vezes melhor que a cachaça, e ainda que tiquira.
O tom abolicionista da obra, com as histórias dos escravizados Túlio (liberto logo no início da trama) e a Velha Suzana (com memórias de uma vida pré-escravidão), se une aos discursos pelo direito das mulheres na sociedade que aparecem nos capítulos sobre as mães dos protagonistas. E a melhor parte é que a ação do romance realmente te envolve no enredo.
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Chego em Paraty e penso no centro histórico conservado como o que a cidade de Alcântara poderia ter. Trechos da obra de Maria Firmina são lidos antes de cada mesa da programação principal do evento. Os dois primeiros programas são sobre a autora homenageada. No dia de abertura, o grupo Boi da Floresta faz um cortejo saindo da Igreja da Matriz, atravessando a ponte e finalizando o percurso doutro lado do canal. Cachaça paratiense é distribuída aos brincantes.
Dessa vez, ver bumba meu boi fora de casa tem o sabor de assistir dias ou três passistas de escola de samba fazendo uma apresentação num aeroporto. Em outro momento de homenagem à Maria Firmina, quando falam de sua origem maranhense, reconheço o tom de exotismo que usam pra falar "e a primeira romancista do Brasil veio do MARANHÃO". Conheço bem esse espanto.
Na sexta à noite, na Casa de Cultura de Paraty, entro numa sala fria de ar-condicionado pra ver uma conversa entre Luciana Diogo e Agenor Gomes. A conversa é mediada por Natércia Garrido, neta de Nascimento de Morais Filho (autor de um livro sobre Maria Firmina lá em 1975!) e estudiosa da obra do avô.
A conversa transita bem entre a vida literária de Maria Firmina e os fatos históricos envolvendo a sua vida. Sobre como na cidade de Guimarães Maria Firmina era um nome em placa de rua enferrujada. Conhecida como professora e musicista, não como romancista e cronista. Sobre como os diários que ela mantinha, o “Álbum”, eram um arquivo de insubmissão.
No final, um homem na plateia agita o braço até captar a atenção da mediadora. Não faz uma pergunta. Pede licença e entoa um auto de bumba meu boi composto em homenagem à escritora. Na plateia, gente de Guimarães, gente de São Luís, estudiosos de Maria Firmina, leitores.
Enfim, sinto que estou honrando a memória de Maria Firmina como pretendia na viagem.
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Em Paraty, as pedrinhas da rua estão a postos para entrar no sapato de cada visitante. As pedras grandes são escorregadias. Caminhando pelo centro histórico, vemos inúmeras quase quedas. Um “opa!” a cada esquina. Só dá passos rápidos, sem olhar pra baixo, quem é nativo. Felizmente não presencio nenhum tombo.
A Festa Literária Internacional de Paraty é o evento dos aplausos. Bater uma mão contra a outra pra cansar também os membros superiores (e não apenas os inferiores de andar torta pelas ruas do centro histórico). Na programação principal, cada frase de autor convidado e/ou mediador deve ser pontuada com palmas. Nada mais justo para os pobres escritores enclausurados numa cidade histórica e praiana, verdadeiras vítimas da prática de observação de pessoas que escrevem fora de seu habitat natural. A prática dos aplausos não é tão comum na programação paralela.
No auditório da praça, aplausos para a entrada dos convidados. Aplausos para cada vez que alguém afasta o microfone da boca. Os participantes mesmos reivindicam seus aplausos em determinados momentos e são atendidos pelo público. Clap clap clap. Não existe uma onomatopéia mais brasileira para o som das palmas?
A cada salva de palmas, o olhar vai automaticamente para a tradutora de libras como se só dessa vez ela fosse fazer um gesto diferente. No lado de fora, aplausos para o telão. Pera, até para o telão da praça!? Sim, até para o telão. É possível que o visitante inexperiente julgue no começo. Mas quando menos se espanta está lá aplaudindo o telão junto com os demais quando aparece um autor de que se gosta.
De dentro do auditório, não dá pra ouvir o ruído de fora. Não são aplausos para serem ouvidos pelos escritores sentados confortavelmente em suas cadeiras com estampa de identidade visual da Flip. É o aplauso como um fim em si mesmo. A verdadeira arte do aplauso.
Para quem também é ruim de geografia, o cenário da Flip é um lugar perfeito para se perder nas ruas de uma cidade. Se Annie Ernaux não andasse acompanhada de um guia e se eu não tivesse um aplicativo de mapa no celular, até hoje estaríamos juntas rondando a Matriz sem conseguir sair do centro histórico de Paraty, perigando escorregar e ouvindo as palmas que ecoam pelas construções coloniais.
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Recapitulando, pude ver Annie Ernaux em três momentos:
1. Caminhando pela rua Tenente Francisco Antonio, especificamente na frente da Livraria das Marés no meu primeiro dia em Paraty. Mais tarde essa rua foi rebatizada como rua Annie Ernaux.
2. No telão, sendo aplaudida (!) entusiasticamente quando falou sobre o direito ao aborto e o livro O acontecimento. Esse momento teve um clima muito parecido com a transmissão do jogo do Brasil contra a Sérvia na estreia da copa. Cadeiras lotadas, pessoas em pé, gente sentada em qualquer canto da praça. Bebendo, anotando ou fazendo fila para a tarde de autógrafos que duraria três horas. Enquanto Annie Ernaux falava, uma orquestra tocava no saguão da Igreja da Matriz. A nobel de literatura do ano está falando e a vida segue. É isso aí.
3. No último dia de Flip, encarei 1h30 de fila pra conseguir entrar na Casa Folha e acompanhar a conversa entre Annie Ernaux e Geovani Martins. O que me fez decidir acordar cedo e esperar foi o seguinte pensamento: se eu já passei mais de uma hora na fila pra tomar vacina, o que me impede de tentar?
Num evento em que nem sempre os autores que dividem a mesa têm muito em comum (a depender do esforço da mediação), Annie e Geovani falaram dos temas que aparecem em seus livros: os momentos históricos inseridos na literatura, a figura materna, a educação pública e a violência. Os temas aparecem de formas diferentes e de certa forma ainda conversam entre si.
O ponto alto foi quando os escritores foram instigados a comentar a obra um do outro. Annie falou de sentir uma espécie de fraternidade ao ler os contos de O sol na cabeça, fez questão de ler uma frase que tinha sublinhado. Geovani comentou ter conseguido, na leitura de Os anos, sentir as emoções do amadurecimento a partir de uma outra perspectiva, de uma mulher.
As falas em português eram passadas para o francês de Annie Ernaux por uma tradutora que sussurava pertinho da escritora. Quando Annie falava (e falava bastante), eu tentava prestar atenção à caça das palavras terminadas em ‘mente’, das poucas que consigo entender no francês. Um tradutor fazia anotações pra conseguir dar conta de passar a mensagem ao público. Começava a falar depois que Annie lançava um “voilà!”.
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No caminho a Paraty, escuto o áudio do livro Las malas (O parque das irmãs magníficas), narrado pela própria Camila Sosa Villada. Que voz. Durante a mesa que ela dividiu com Luciany Aparecida, anoto no caderno: “palavras deliciosas pra ouvir da boca de uma escritora como Camila: lesbiana.”
Me encanto com o que ela tem a dizer quando perguntam sobre literatura. Que não se enxerga na tradição de realismo mágico, mas no que chama de ‘ciencia ficción travesti pobre’. Em travestir a literatura, sem se ater a gêneros literários. No dia seguinte, na Casa Folha, escuto que é perigoso dizer que a literatura pode salvar alguém, principalmente no contexto latinoamericano. Contra a visão utilitária das coisas. Que la literatura no sirve para nada.
Perdida no labirinto das ruas de pedra com Annie Ernaus, além dos aplausos, ouvimos também a gargalhada de Camila Sosa Villada. Rindo perto do microfone, jogando a cabeça pra trás.
outras doses
Na newsletter Queria ser grande, mas desisti, Bárbara Bom Ângelo escreveu sobre as mesas do Benjamín Lababut, Annie Ernaux e Tamara Klink com Nastassja Martin.
Paraty, Lillebonne, Araxá - Um encontro entre Annie Ernaux, escritora, e Lázara Borges, minha avó, por Marina Borges na newsletter Paris me aguarda.
Vou te falar #73 - Sobre a Flip, a literatura e a cura pelo espanto, por Carolina Ruhman Sandler.
Amo ler seus textos.
Adorei você falando das palmas!!!
E esse audio book da Camila: quero!!!