Retornos
#14 -- uma retrospectiva literária para 2021; a tríade Munro-Allende-Ferrante; uma passadela na frente da Casa das Minas em São Luís
No ano passado, perdi a planilha que usava para registrar as leituras feitas desde 2011. Era um arquivo no Google Drive, que eu podia atualizar do celular se sentisse uma urgência para acrescentar as informações de título e autoria logo depois de terminar um livro. Numa dessas faxinas de documentos acumulados por anos, devo ter deletado a planilha sem querer. Passaram-se os 30 dias em que cada arquivo fica no limbo, talvez esperando que a gente apareça a tempo de apertar o botão de restaurar antes que o arquivo seja excluído definitivamente. O jeito foi apelar para um backup de meados de 2019, quando a planilha ainda estava no Excel. Preenchi os buracos com informações de redes sociais (obrigada, skoob), e voltei ao mundo offline.
A aba de 2021 mostra 35 livros lidos, quase metade de autoria queer, apenas dois livros escritos por homens. Algumas constatações me deixam com um gostinho amargo: a lista ainda é muito branca; o segundo país mais lido do ano foram os Estados Unidos.
O ano passado foi um tempo de retornos. Retorno aos contos de Alice Munro, retorno a obras mais recentes lançadas por Isabel Allende, retorno a Elvira Vigna, retorno a livros que não tinham me marcado tanto assim e pude dar uma nova chance, retorno a uma São Luís do passado que só cheguei a conhecer na ficção.
Percorrendo a lista de leituras, percebo que as marcações dos livros preferidos se concentram a partir de junho, com Minha casa é onde estou (tradução: Francesca Cricelli). Igiaba Scego escreve sobre essa divisão entre culturas e heranças familiares. Tinha ouvido a própria autora falar do livro numa palestra aqui em Curitiba, já sabia que era o meu tipo de leitura.
Foi nesse mesmo mês que li Audre Lorde pela primeira vez, capturada em Irmã Outsider (tradução: Stephanie Borges) com os relatos de uma viagem à Rússia para depois ter que batalhar um pouco para acompanhar o que ela escreve sobre o erótico como poder e chegar ao texto que mais me deixou marcas: “O filho homem: reflexões de uma lésbica negra e feminista”. Um tempo depois, já em agosto, li A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios de Gloria Anzaldúa (tradução: tatiana nascimento), uma dessas leituras que me faz grifar páginas quase inteiras. Os textos ainda estão reverberando em mim.
Na editoria Isabel Allende, escapuli da leitura em ordem cronológica para matar a curiosidade com Mujeres del alma mía (2020), que não vale a pena caso você já tenha lido qualquer outro livro autobiográfico dela, e Largo pétalo de mar (2019), um desses títulos de Isabel que tinha tudo pra dar errado (de tão brega) e te surpreende. É um livro baseado na história de que Pablo Neruda fretou um navio pra trazer intelectuais espanhóis fugidos durante a Guerra Civil Espanhola para o Chile. Na ordem de lançamento, deveria estar ainda em 2002, quando Isabel lançou uma trilogia infanto-juvenil. Só me falta a coragem pra encarar isso.
Leio os contos de Alice Munro na disposição do caos. Foi a vez de conhecer As luas de Júpiter (tradução: Cássio de Arantes Leite), lançado em 1982 quando Júpiter tinha apenas 12 luas conhecidas. Hoje são 79 (!). Essa curiosidade me deixou morta de vontade de ir a um planetário (lê-se: tirar uma soneca num planetário) como a própria protagonista do conto-título, que vai a um planetário próximo a um hospital para pensar na morte do pai.
O livro ainda me forneceu material para a teoria mais descabida que já se passou dentro da minha cabeça: que Alice Munro e Elena Ferrante podem ser a mesma pessoa. “Dulse” é um conto sobre uma professora/escritora que se refugia em uma ilha canadense e interage com os demais frequentadores do povoado litorâneo como Leda em A filha perdida. Também reli Vida querida (tradução: Caetano Galindo; 2012) para um encontro do Leia Mulheres de Curitiba e pude voltar ao conto que por relance mostra uma mãe procurando uma filha fugida, recorrendo ao tema de três contos com os mesmos personagens do livro Fugitiva. Também na categoria releitura-que-fiz-para-o-Leia-Mulheres, teve O corpo dela e outras farras (Carmen Maria Machado, com tradução de Gabriel Brum), que só melhorou pra mim depois que eu já tinha lido Na casa dos sonhos.
Nos quadrinhos, ficaram entre os favoritos, Minha coisa favorita é monstro (Emil Ferris, com tradução de Érico Assis), Arlindo (Ilustralu) e Perigosas sapatas (Alison Bechdel, com tradução de Carol Bensimon), outra releitura proveitosa de 2021, sendo que essa coletânea eu tinha lido ainda em 2020, tava fresquinha.
O destaque do ano ficou com a literatura nacional. Iniciei janeiro com Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves) e suas 952 páginas lidas em menos de duas semanas. Uma saga que tem início no atual Benin e fica num vai e volta entre o Brasil e a costa oeste de África. São Luís aparece brevemente na história, e foi assim que conheci a história da Casa das Minas, uma casa de culto de tambor de mina na rua São Pantaleão, no bairro Madredeus, coladinho no centro histórico da cidade.
A casa é importantíssima para Tambores de São Luís (Josué Montello), lido nas únicas duas edições do livro na Biblioteca Pública do Paraná (uma delas foi doada pelo professor que assina a introdução à obra), cada uma teve que passar um mês comigo para dar conta de terminar. O livro tinha 666 páginas e a leitura durou bem mais tempo. Coisas da vida. Em janeiro, encarei Um defeito de cor numa janela entre empregos. Mais ao final do ano, insisti no clássico maranhense enquanto trabalhava e finalizava o TCC da segunda graduação.
São os tambores da Casa das Minas que ressoam durante a caminhada de Damião pelas ruas de São Luís para conhecer o trineto que está pra nascer. No percurso, conhecemos a história do protagonista, filho de fundador de quilombo, que volta a ser escravizado e, depois de liberto, é impedido de terminar os estudos para se tornar padre. Com os estudos avançados, Damião sente que deve fazer alguma coisa pela população negra no Maranhão enquanto ele mesmo luta para viver com dignidade. Tambores é uma daquelas leituras obrigatórias de vestibular estadual (quando isso existia) que eu nunca tinha parado pra ver sequer o resumo. Foi uma boa surpresa chegar nesse livro só agora, principalmente depois de ter lido Um defeito de cor.
Na minha viagem a São Luís no finalzinho do ano, depois de mais de dois anos sem saber o que era um calor de verdade, passei de carro na rua São Pantaleão para dar uma olhadinha na Casa das Minas. Reparei na placa que marca o tombamento do imóvel. Minha irmã aproveitou pra contar que entrou lá uma vez para usar o banheiro a caminho do encontro de grupos do bumba meu boi no dia de São Pedro. Reparei que uma das folhas da porta de madeira estava aberta, mostrando uma grade e um corredor escuro. Viramos a esquina e fomos embora.
Menções honrosas de 2021: Garota, mulher, outras (Bernardine Evaristo; tradução: Camila von Holdefer); A polícia da memória (Yoko Ogawa; tradução: Andrei Cunha), Por escrito (Elvira Vigna) e Diários de Wuhan (Fang Fang; tradução: Monique D’Orazio e Fábio Alberti).
saideira
1.
Por entre discursos exaltados, uns do João Moura, outros do Aluísio Porto, e outros mais do Antônio Lobo, vieram às mesas as pescadas fritas, as tortas de camarão, as pernas de caranguejo, o arroz de-cuxá, o caruru, as postas de peixe-pedra, tudo entremeado de camarões no espeto e outras doses de tiquira, até que o Damião, ouvindo estoirar novas girândolas de foguetes para os lados do Desterro, advertiu os companheiros de que estava na hora de irem andando para a igreja das Mercês. (p. 619)
Dei de cara com uma propaganda deste humilde boletim durante a leitura de Tambores de São Luís, numa cena após a notícia da abolição do cativeiro, como é dito no livro. Fiquei honrada. Obrigada, Josué.
2.
Caso queiram me acompanhar nas leituras de 2022, ainda não me decidi se vou seguir no Goodreads, no Skoob ou nos dois.