Dois livros sobre animais
#30 -- ou dois livros sobre sonhos; leituras no deslocamento Paraty-Curitiba; e o que ficou na minha cabeça pós-Flip
(Diorama de ursos pardos no Museu de História Natural de Nova York, nos Estados Unidos)
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Na linha de ônibus Paraty – São Paulo, eu lia Diorama, da escritora gaúcha
. O livro fala sobre um crime ocorrido em Porto Alegre na década de 80. Um deputado é acusado de atirar em outro deputado, colega de Assembleia Legislativa. Um crime sem solução. Nada que tenha chegado aos meus ouvidos, nascida só na década seguinte a muitos quilômetros de distância da cena da morte. O livro preenche lacunas. O final é um grande “isso bem que poderia ter acontecido”.Lendo na estrada, em deslocamento, lembrava de um outro livro de uma autora latinoamericana que se mudou para os Estados Unidos. Arquivo das crianças perdidas, da mexicana Valeria Luiselli, é uma viagem de carro ao som da música Space Oddity (David Bowie).
E também é um livro sobre dois temas: um casal (hétero) que está prestes a se separar e a chegada de crianças imigrantes nos Estados Unidos. Tanto que o tema da imigração rendeu também um livro de não ficção que ainda não foi traduzido por aqui: Tell me how it ends, an essay in forty questions. Um ensaio a partir da experiência da escritora como tradutora voluntária para imigrantes que falavam espanhol, passando junto com eles por esse formulário de 40 perguntas usado na entrevista da imigração, em inglês.
Diorama é um livro que cairia bem com um complemento de não ficção. Além do crime real, o segundo tema do livro é a taxidermia. É com isso que trabalha a protagonista Cecília, filha do deputado acusado de assassinato baseado no crime real.
Como a narrativa é em primeira pessoa, temos alguns momentos de divagação da personagem com interpretações sobre o ato de reproduzir animais para exibição. Da contradição de matar para preservar, da relação entre humanos e animais, da reflexão sobre objetos que só vão parar em vitrines de museu quando sentimos a urgência de lembrarmos desses objetos.
Esses momentos são como escapes de um ensaio que poderia ser escrito sobre o tema. Eu leria mais o que Carol Bensimon tem a falar sobre taxidermia.
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(Diorama de ursos-cinzentos no Denver Museum of Nature & Science)
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Foi mais para o final da leitura de Diorama, ainda dentro do ônibus interestadual, que me espantei com o seguinte trecho, narrado pela protagonista:
Li isso recentemente: “Os ursos não suportam olhar nos olhos dos humanos, porque veem nele o reflexo da sua própria humanidade. Um urso que cruza o olhar de um homem buscará sempre apagar aquilo que vê ali. É por isso que, se vê seus olhos, ele invariavelmente ataca. Você olhou nos olhos dele, não foi?” (página 258)
Naquele momento eu não podia afirmar com toda a certeza do mundo de onde era o trecho acima. Mas sabia bem a situação em que eu mesma tinha ouvido palavras muito parecidas a essas, poucos dias antes. Na mesa da programação principal da Flip com participação de Nastassja Martin, antropóloga francesa que escreveu um livro após ser atacada por um urso no norte da Rússia.
Escute as feras foi o primeiro livro que comprei em Paraty. Sabia que a vontade de ler voltaria com força depois de ver a mesa com a autora. O contexto da pergunta me foge. O que lembro é de Nastassja (no caso, a voz da intérprete responsável pela tradução simultânea para o português) falando justamente sobre esse trecho de Diorama que aparece na página 88 de Escute as feras, como descobri depois durante a leitura. São poucas as mudanças de palavras com a tradução.
“Os ursos não suportam olhar nos olhos dos humanos, porque veem neles o reflexo de sua própria alma.”
Conferi as datas de publicação dos livros. É possível que a referência seja de Escute as feras. É impossível que Carol Bensimon tenha tirado esse trecho de outro lugar. Fico contente de perceber a ressonância de um livro no outro. Aliviada de ter confiado no meu instinto, estava certa. Já tinha ouvido aquele trecho.
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Lendo Escute as feras, parte na rodoviária do Tietê, parte no trajeto entre São Paulo e Curitiba, parte já na minha casa, eu lembrava da manhã em que escutei, também em Paraty, a fala da antropóloga Hanna Limulja, autora do livro O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami.
Nastassja escreve sobre sonhos, visões da noite, narrativas sobre presenças múltiplas que podem habitar um mesmo corpo. Hanna falou sobre tudo o que acontece num sonho é real, sobre sonhos serem uma forma de pequena morte.
Não estive na conversa com Nastassja e Hanna, uma pena. Mas posso continuar depois, na leitura, a encontrar pontos em comum entre os livros. Entre o que elas pesquisaram, compreenderam e estão nos contando. Estou disposta a escutar.
outras doses
- Taxidermista faz arte com insetos, cabeça de cachorro e esqueleto de leitão -- perfil escrito pela Flávia (da newsletter
) sobre um taxidermista que mora no centro de Curitiba.- Bárbara (da
) colaborou na com um texto sobre a sua relação com os livros da Sally Rooney, principalmente Pessoas normais. Todo mundo deveria escrever sobre seu livro preferido.- Quando estiver mal, vista meias -- uma crônica de
.- Na , Paula Maria fez uma retrospectiva de 2022 a partir de um rolê, uma série, um show, um livro (!), uma conquista e um texto de newsletter.
- Estou gostando de acompanhar as crônicas de Aline Valek sobre morar na Alemanha. Gostei de saber que Munique é uma cidade leonina.
- Uma série de tirinhas da
sobre participar de feiras de quadrinhos.- A newsletter de Luisa Manske,
, “fala sobre cidades e pessoas com a ajuda de filmes andantes - aqueles filmes em que os personagens andam pela cidade e refletem sobre a vida”. As últimas edições foram sobre A Ilha de Bergman e Carol.
Eu queria muito ser uma pessoa que consegue ler no ônibus, mas só de pensar já fico tonta haha é uma tristeza.
Gostei muito do que você escreveu sobre os livros e de como eles se relacionam. O Escute as feras tá na minha lista faz um tempo e tô morrendo de curiosidade com ele. Quem sabe na lista do ano que vem?
Muuuito obrigada pela citação nos links <3
Que honra estar aqui na sua News! Quero muito ler escute suas feras, fiquei impactada com o que ouvi falar a flip, mas não vi a mesa...
Eu adoro dioramas, tem uma coisa esquisita sobre a morte e vida, não acha? Além disso, é o nome de um ótimo disco do silverchair. Beijo