Clube de leitura
#24 -- sábados para conversar sobre literatura; categorias para as frequentadoras de um clube; bom mesmo é pegar ônibus no fim de semana pra terminar um livro
Desço do ônibus faltando dez minutos para começar o encontro. Estou no último capítulo de Las malas (O parque das irmãs magníficas, de Camila Sosa Villada), a trama já naquele ritmo acelerado indicando que o quer que vá acontecer vai render um bom final. Não faço ideia do que vem pela frente, vou ter que descobrir durante o clube, é o jeito. Se tivesse perdido o ônibus das três e meia, se tivesse me atrasado só mais um pouquinho, teria dado tempo de terminar o livro. Não perderia a chance de conhecer o final na última linha antes do vazio.
Foi o que aconteceu naquele outro encontro sobre Niketche (Paulina Chiziane). Cheguei mais de meia hora atrasada, com a leitura terminada. As frases finais foram lidas em pé no ônibus estranhamente cheio para uma tarde de sábado. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direção ao coração do deserto, ao inferno sem fim.
Hoje, me vejo hesitante no terminal, com a leitura da vez inacabada. Fico me perguntando se deveria mesmo ter vindo. Saio daqui? Passo pela catraca? Ou volto pra casa? Ainda dá tempo, ninguém me viu chegando. Sinto que habilitei o modo de preenchimento automático da vida quando ocupo pelo menos dois finais de semana do mês com clubes de leitura como um motivo pra sair de casa. Um motivo convincente, que realmente me faça sair de casa. Mesmo que agora eu hesite.
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Na mudança pra Curitiba, isso lá em 2017, vim decidida a frequentar o clube do Leia Mulheres. Antes, em São Paulo, eu nunca arranjava tempo de participar dos encontros. Na real, participar do clube nunca tinha sido uma prioridade. E então vim decidida a criar um compromisso para as tardes dos últimos sábados de cada mês. Abri uma brecha pra ter a experiência de compartilhar impressões de leitura com estranhos.
A ideia que eu tinha sobre clube de leitura era simplista: um grupo de mulheres na casa dos 50 anos, cada uma segurando uma taça de vinho na sala de alguém. O que eu encontrei foi um grupo de mulheres brancas (principalmente mulheres, principalmente brancas, de todas as idades). Sem a taça de vinho.
O meu primeiro encontro foi numa livraria apertadinha, no centro. Eu, nova na cidade, nova no clube, nem tive coragem de abrir a boca naquele dia. O livro não sei se me lembro. Talvez fosse Minha vida de menina (Helena Morley). Com o passar do tempo, aprenderia que mesmo as leituras mais sem graça podem crescer depois da conversa sobre o livro, tendo contato com outros pontos de vista sobre o mesmo texto que eu tinha acabado de ler.
Debaixo da primeira camada de conhecer novas autoras (Scholastique Mukasonga, Tsitsi Dangarembga, Ruth Guimarães, só pra mencionar algumas) e de ter uma boa oportunidade para falar sobre livros (e eventualmente para espetar um boneco de Nino Sarratore no encontro sobre os dois últimos da tetralogia napolitana), participar do clube me fez conhecer outros cantos da cidade nem que fosse só pra entrar na casa de leitura de um bairro que eu não conhecia ainda.
Conversei, mesmo que só por uma tarde, com pesquisadoras, tradutoras e com outras leitoras que habitam a mesma Curitiba fria, a mesma Curitiba que recebe pessoas de tantos lugares diferentes que acabam se esbarrando num clube de leitura.
Aos poucos, fui me tornando parte do grupo. Começaram a me chamar pelo nome, redes sociais foram trocadas, a conversa se estendia até nos separarmos na porta para cada uma seguir um rumo. Curitiba não é uma cidade fácil. Não é quem está chegando agora que vai dar conta de mudar o entorno. O migrante é que acaba influenciado pela sisudez do lugar. Mas não tem muito pra onde fugir depois de encontrar as mesmas pessoas uma vez por mês durante um par de anos. Cores e cortes de cabelo mudam, os relacionamentos também. A conversa fiada nos amolece.
Passados cinco anos, incluindo na conta os encontros virtuais nos meses de isolamento, pude classificar as frequentadoras do clube em algumas categorias mais arrojadas que a clássica escala entre a pessoa que nunca fala e a pessoa que não deixa mais ninguém falar. Ressalto que este é um trabalho em andamento, sem qualquer ordem de preferência:
- A contadora de histórias pessoais sem a menor relação com o livro do mês -- isso me lembrou a história de uma amiga... [insira aqui um relato desinteressante];
- A frequentadora de primeira viagem que se apresenta já pedindo desculpas e se encaixa instantaneamente ao grupo (mesmo que ela nunca mais volte);
- A frequentadora de primeira viagem que se apresenta já pedindo desculpas e ao mesmo tempo mostra de cara feia que está odiando a experiência porque não concorda com algo que alguém disse (essa nunca mais volta);
- A ocupada que nunca termina o livro e, contra todas as expectativas, sempre tem algum comentário interessante pra fazer;
- O homem que frequenta o clube acompanhado da namorada e não solta um ai;
- A leitora de Elena Ferrante que está sempre à espreita, esperando a oportunidade perfeita para fazer um comentário, de preferência, sobre a tetralogia napolitana. Momento em que todas as demais respiram aliviadas. A porteira foi aberta. É permitido falar sobre Ferrante durante os quinze minutos seguintes.
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No encontro sobre a tetralogia napolitana, inventei de perguntar se alguém ali tinha algum defeito a apontar sobre a Ferrante. Repare na ousadia.
O que eu queria era ouvir uma voz dissonante. E o que consegui foi me tornar a figurinha carimbada que vai sempre procurar um outro lado. A voz do contra. Isso virou até piada.
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O que mais me interessa no clube de leitura é, justamente, fazer parte. Conversar sobre os livros, esticar um pouco mais o momento do fim de uma leitura, quando fecho a página (ou encaro a palavra ‘fim’ na tela do kindle) e tiro uns minutinhos para fitar o nada.
outras doses
tasqueando de Mariana P. Bragança: Despedida -- um texto que não sei se é ficção ou não sobre se despedir de um amor e de uma cidade, caminhando pelas ruas de Curitiba.
Cuca fresca de Cristal Muniz: O que mudou depois que tudo mudou -- sobre aceitar nossas incoerências, um texto que conversa com o A vida é uma piscadela de Carolina Diniz no Jornalzinho (ex-vegana é gente?).
e um curso: A memória como matéria-prima da literatura, com Ingrid Fagundez (repórter, professora de não ficção literária, minha amiga desde a faculdade). A partir de 25/08, na Escrevedeira.
Amiga, amei o texto <3