2023, o ano dos audiolivros
#55 -- um casalzinho hétero da literatura, a lição de Alison Bechdel e, como sempre, mais autoras latinoamericanas
2023 foi um bom ano para os audiolivros. Não escutei a versão em áudio de Cinquenta tons de cinza como Phyllis em The Office, série que vi pela primeira vez e entrou na lista das preferidas de todos os tempos. Ao longo do ano, mudei de emprego, voltei a trabalhar no presencial (e por isso decidi ver todas as temporadas de The Office, faltou só ver Parks and Recreation), mudei para um apartamento maior, voltei a habitar o centro da cidade. Recebi visitas de familiares, atravessei o Paraná pra ir no casamento da minha cunhada, continuei frequentando o clube do Leia Mulheres.
No meio disso tudo, manter a leitura como um hábito me fez bem. Vejo a planilha de livros lidos e sinto falta de ter me desafiado mais nas escolhas. Pelo menos, continuei lendo. Nas brechas do dia, logo depois de acordar ou à noite só para pegar no sono.
O primeiro audiolivro que escutei foi em 2019. Depois de todo esse tempo entre idas e vindas, o livro prontinho para o fone de ouvido já faz parte do meu dia a dia. Em 2023, quase ⅓ dos livros foram lidos no formato de áudio. Estar aberta a dar play num livro qualquer, sem me preocupar se a leitura vai ser boa ou se estou lendo da forma ideal, foi o que me fez chegar a alguns dos melhores livros do ano, como A filha única (Guadalupe Nettel), Cinza na boca (Brenda Navarro) e Quiltras (Arelis Uribe). Mencionar de cara essas duas autoras mexicanas e uma chilena é resultado de estar sempre de olho na literatura contemporânea da América Latina.
Logo nos primeiros meses do ano, duas leituras marcantes foram Linea nigra (Jazmina Barrera) e Literatura infantil (Alejandro Zambra). Ensaios sobre maternidade e paternidade do meu casalzinho hétero de estimação. Livros que dialogam entre si, como os romances Punto de cruz e Poeta chileno, lidos por mim no ano passado. Fico só na expectativa das próximas peripécias que esses dois vão aprontar de novo na ficção.
Vale dizer que os dos livros foram lidos/escutados em formato de áudio. O Literatura infantil, inclusive, narrado pelo próprio autor. Gracias a diós Alejandro Zambra é viciado em narrar seus livros. A narração de Jazmina Barrera só fui conhecer no ensaio “Acapulco”, parte da coletânea Una canción sin volúmen (uma produção da plataforma Everand, antigo Scribd). Senti o arrepio de ouvir pela primeira vez a leitura na voz dela. Espero que Jazmina tome gosto pela coisa.
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No segundo semestre, me dei de presente de aniversário o lançamento O segredo da força sobre-humana (Alison Bechdel). Depois de fazer uma história autobiográfica em quadrinhos para (1) falar da relação com o pai e (2) da relação com a mãe, O segredo da força sobre-humana finalmente fala sobre a trajetória da própria Alison.
Por ter capítulos divididos em décadas, é um livro propício para se pensar em que raios você está fazendo com a sua vida. A relação com os exercícios físicos veio de uma ideia inicial de trabalhar num livro mais leve (onde já se viu Alison Bechdel escrevendo sobre temas leves?) e acabou apenas como um fio condutor da história, que divide espaço com todo o interesse dela por transcendentalismo.
Antes de fazer a tradicional retrospectiva baseada em livros, invoquei com a ideia de que precisava reler O segredo da força sobre-humana para entender melhor por que esse livro foi tão marcante no meu ano. Uma meta para 2024 é escrever sobre todos os livros cinco estrelas que passarem pelas minhas mãos. Escrevo isso também como um compromisso também com a newsletter.
Nos últimos dias, de novo com o quadrinho, pensei que o que me prendeu na leitura foi a ideia de como o eu pode ser um obstáculo, atrapalhar planos que fazemos para nós mesmos. No sentido de que o medo pode nos impedir de fazer determinadas coisas. Onde podemos chegar se não nos preocuparmos com as realizações do eu?
Outro ponto foi um aprendizado na prática de yoga sobre ‘transformar o desconforto em objeto de interesse’, palavras que Alison Bechdel usa também para falar de processo criativo e de uma fase em que começou a fazer quadrinhos menos superficiais, mais parecidos com a vida real.
Nessa mesma linha, um trecho de um poema de Adrienne Rich aparece com destaque no livro: “Ninguém nunca nos disse que devemos estudar nossa vida, fazer da nossa vida um estudo, como se aprendêssemos história natural ou música, que devemos começar primeiro com exercícios simples”. No fundo, ler Alison Bechdel me deixou com vontade de me mexer. Também no sentido de sair para caminhar por aí. Mas, principalmente, de me mexer para o que quero realmente fazer. 2023 foi um ano em que me senti mentalmente presa ao trabalho, mesmo com mais horas disponíveis no meu dia. Quero me livrar disso.
Guardei apenas um trecho do documentário Fire of love (Vulcões: a tragédia de Katia e Maurice Krafft): “Nós contemplamos, deitamos na beira do abismo”. Agora eu não me lembro exatamente do contexto em que a frase foi dita. De qualquer forma, essas poucas palavras fazem sentido com o que ficou em mim depois de conhecer a história desse casal de cientistas que viajavam pelo mundo investigando as erupções vulcânicas e trabalhando com divulgação científica entre os anos 60 e 80. Ter paixão em alguma coisa, qualquer coisa, não necessariamente um trabalho, é essencial para estar vivo.
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Em 2023, li livros de 16 países diferentes. Depois do primeiro lugar do Brasil (com 15 títulos), o México quase conseguiu desbancar os Estados Unidos. Os dois países empataram no segundo lugar, com sete títulos cada. Em seguida, vem o Chile (com 5 títulos) porque, apesar de não ter conseguido ler Isabel Allende, acabei relendo algumas coisas do Zambra.
No quesito releituras, o destaque fica para Anarquistas, graças a Deus (Zélia Gattai), sempre um favorito da vida, e As margens e o ditado (Elena Ferrante), do tipo de livro para ler duas vezes no mesmo ano e continuar voltando a ele sempre que der. No primeiro contato, foi uma leitura que me assustou, me distanciou da escrita. Meses depois, relendo para o Leia Mulheres, consegui tirar algo de inspiração daqueles ensaios, além de entender mais da literatura de que tanto gosto escrita pela Ferrante.
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Menções honrosas: Pertencimento (Bell Hooks), Cartas a uma negra (Françoise Ega), a voz de Rosa Montero (nos audiolivros La ridícula idea de no volver a verte e El peligro de estar cuerda), Devassos no Paraíso (João Silvério Trevisan) e La familia (Sara Mesa).
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Antecipando um quadro que vai aparecer mais por aqui, uma lista compacta de personagens LGBT+ marcantes nas leituras do ano:
- O amigo Osvaldo de Caro Michele (Natalia Ginzburg).
- A grandiosa Gertrude Stein em Autobiografia de Alice B. Toklas (Gertrude Stein).
- O irmão gay salafrário de Apague a luz se for chorar (Fabiane Guimarães).
- Kaede, a sapatão imigrante japonesa que anos depois batiza a cachorra “Diana” com o mesmo nome do animal de estimação da primeira crush em Peixes de aquário (Rafaela Tavares Kawasaki).
- O casalzinho sáfico que se casa em plena pandemia na história em quadrinhos Isolamento (Helô D’Angelo).
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Não faz muito tempo que a newsletter bateu os 1.500 inscritos. Aproveito a oportunidade para agradecer a todos que me leem e me incentivam a continuar escrevendo 💜.
mais doses
Em 2024, vou ler Guerra Paz (sendo que nunca terminei Anna Kariênina).
Coluna de Jeferson Tenório - Questionar a lista de livros da Fuvest é um efeito colateral das mudanças.
Vai ter livro novo de Aline Zouvi, editado pela Companhia das Letras.
As conchinhas mais brilhantes que 2023 trouxe para mim - melhores do ano de Aline Valek. Também aparece na lista dela o documentário Fire of love.
Sobre os melhores do ano, puerpério, livros lidos e um pequeno caos - a retrospectiva de Michele Contel.
📚 A arte de perder - a última edição da newsletter de Ana Rüsche é uma conversa sobre perdas e derrotas.
Também quero ler Guerra e Paz
as suas recomendações sempre me dão tanto ímpeto de começar, amiga! baixei o audible e tou escutando a biografia da Rita Lee na academia já! próximo passo é tentar ouvir as narrações em espanhol, pra também treinar isso. tô animada! obrigada <3