Audiolivros em espanhol
#50 -- o tipo de livro que escuto em áudio; escritores leem suas próprias obras; e cinco recomendações para ouvir
crédito das imagens: fotografia de Lupe de la Vallina para a revista Jot Down.
Na parte final do audiolivro de El peligro de estar cuerda (O perigo de estar no meu perfeito juízo, na versão em português de Portugal), são listadas as fontes utilizadas na pesquisa do livro. Na narração da autora Rosa Montero, até uma lista lida em voz alta me parece interessante. É como fazer aquele elogio à escrita de alguém: eu leria até a lista de compras de [insira aqui um escritor considerado clássico]. Pois a narração da escritora é assim de boa. Eu escutaria a leitura de suas referências bibliográficas por horas e horas.
Fico mais distraída quando escuto um livro de não ficção, me perco nos meus próprios pensamentos e, com frequência, preciso ouvir o capítulo inteiro novamente. Rosa Montero, aparentemente, só narra seus livros de não ficção. O outro que ouvi dela foi La ridícula idea de no volver a verte. Mas gostei tanto do seu tom de voz que me fez aceitar a não ficção. Não preciso captar tudo. Se não fosse a versão em áudio, talvez nunca chegasse a vez dessa leitura.
Nem existe momento ideal para sentar e ler. Peguei o hábito lendo em intervalos de aulas, esperando o horário de ir embora. A leitura ainda é um ritual feito nas brechas do dia. Rosa Montero tem essa voz rouca, de mulher mais velha. A sensação é de estar sentada numa cadeira confortável, depois de um jantar na casa de alguém conhecido, só prestando atenção no que ela conta para outro interlocutor. Me sinto uma espectadora, na plateia.
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Tenho um fraco por livros narrados pelos próprios escritores. A narração de um profissional, às vezes, é forçada. Dependendo, sinto que estou escutando uma radionovela. Eu mesma imagino os efeitos sonoros que desviam minha atenção. A familiaridade do escritor com seu próprio texto possibilita uma narração mais neutra. Existe uma relação com a história a ser contada. A familiaridade com cada vírgula.
O tipo de livro que mais gosto de escutar em áudio é o de ficção contemporânea. Presto mais atenção no texto. Ficam comigo cenas inteiras, o desenrolar da trama, as imagens que elaborei aos personagens. Lembro com detalhes de partes do livro Kentukis (Samanta Schweblin), um dos primeiros que escutei, lá em 2019. Um bicho-de-pelúcia/robô-de-companhia fugindo do seu dono, outro na vitrine de uma loja esperando ser comprado, a mulher do outro lado da tela, controlando um kentuki, crente que a jovem que tinha o bichinho em casa estava sendo roubada pelo ficante.
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O que me faz gostar tanto de audiolivros é que, com eles, consigo me focar em apenas uma linha de raciocínio. É a minha meditação. Escutar um livro me deixa mais centrada. Tanta coisa se passa na minha cabeça. A consciência paralisante do eu. Ao me concentrar na voz que sai dos fones de ouvido, fico com espaço apenas para um outro canal de comunicação interno: uma sequência de passos a cumprir. Guardar a louça, lavar o que tem na pia, preparar a marmita, sair de casa. Ou ainda, virar à esquerda na saída do prédio, caminhar no lado direito da calçada, desviar do grupo de colegas de trabalho que saem para almoçar ao mesmo tempo e por aí vai. Caminho e tenho um senso de realidade irrefletido e imediato1. Muda o meu dia a dia.
Também não deixa de ser uma forma de me entreter. Aproveito para me divertir enquanto cumpro certos afazeres. Recomendo ouvir no ônibus. Os olhos livres para ver o veículo se aproximando, não perder o ponto e, se for o caso de trocar de linha no terminal, ter mais liberdade para se movimentar entre os amontoados de gente. E é uma oportunidade de conhecer livros que não teriam vez tão cedo. O audiolivro é um fura-fila.
Sabe aquele livro que quero ler, mas só um dia, algum dia? Aquele livro lá que nunca será lido se eu for esperar o momento ideal, numa poltrona com apoio para os pés, ao lado de um bloco de anotações, munida de marcadores coloridos de página? Pois é esse mesmo que escolho. Por isso, não me importo tanto se sinto que não estou absorvendo tudo o que há para absorver. Isso nem é possível. Sem contar que dá pra voltar os trinta segundos que me perdi calculando se ia ter tempo de atravessar a rua antes do sinal fechar para os pedrestes. Nada como terminar um audiolivro e dar o play nele outra vez.
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A preferência por escritores latinoamericanos é o que me possibilita manter o contato com o mundo hispanohablante. É como gosto de dizer: ler Isabel Allende desde cedo logo me transformou numa viúva do Chile. Escutar livros em espanhol (em castellano, se preferir) é a única chance que tenho de não perder o que já aprendi, de fazer uma leve manutenção do sotaque chileno e de reparar em sotaques de outros países.
Depois que terminei de escutar o áudio de El peligro de estar cuerda, no sotaque espanhol de Rosa Montero, fiquei com uma palavra nova na cabeça: LONTANANZA. Parecia que em tudo o que lia ou ouvia em espanhol mencionava esse mesmo termo. Tive a impressão de ter ouvido tantas vezes que fui conferir no texto de Rosa Montero. Foram apenas duas ocorrências. De origem italiana, lontananza é uma palavra para descrever camadas de uma pintura (términos de un cuadro más distantes del plano principal). Como locução adverbial, é sinônimo de a lo lejos (solo hablando de cosas que, por estar muy lejanas, apenas se pueden distinguir).
A primeira vez que a expressão ‘en lontananza’ aparece no livro é num dos meus trechos preferidos, que compara os textos autobiográficos a cartas de navegação da existência de outras pessoas: “aquí, los bajíos del envejecimiento; allá, los arrecifes de la muerte y el duelo; en lontananza, el hermoso mar abierto y soleado”.
Uma breve lista de mais livros (em espanhol) lidos por seus escritores
00 - Prólogo de Paula, lido pela Isabel Allende (Chile): Ótimo para dar uma choradinha. Ainda não encontrei o livro inteiro na voz dela. Fica aqui a menção honrosa.2
01 - Qualquer um do Alejandro Zambra (Chile): Poeta chileno, Formas de volver a casa, Literatura infantil, tanto faz. Ainda bem que ele é viciado em ler suas próprias obras. Talvez seja necessário pesquisar antes os chilenismos mais comuns.
02 - La hija única, Guadalupe Nettel (México): Uma das melhores leituras do ano até agora. Foi com a Guadalupe a minha primeira experiência escutando um livro de contos (El matrimonio de los peces rojos). Semanas atrás, li a versão em texto do mais recente dela (Los divagantes) e fiquei pensando se não gosto é da narração da autora. Mais que a escrita. A confirmar.
03 - Ceniza en la boca, Brenda Navarro (México): bom pra escutar algumas diferenças entre o espanhol mexicano e o espanhol da Espanha, onde a protagonista vai morar desde o começo do livro. Fora as diferenças culturais. Gostei tanto da narração e da voz que depois vi todas os vídeos disponíveis com conferências da escritora em escolas de literatura.
04 - Voyager, Nona Fernández (Chile): um livro de não ficção que foge à regra de me deixar distraída. Sempre que vou escolher um novo título para ouvir, preciso me segurar para não ouvir esse, já que é curtinho. Talvez já tenha escutado três vezes até agora.
05 - La piedra de la locura, Benjamin Labatut (Chile): é a sua chance de não achar o Labatut tão chato assim. Fica por sua conta e risco.
mais doses // duas newsletters novas pra ficar de olho:
01 - Bom proveito (Gabriele Duarte): sobre viajar (e viver) de forma interessada e interessante. A estreia foi com um texto que fala das claraboias do Porto.
02 - Índice (Ingrid Fagundez): uma newsletter de fragmentos (des)ordenados. Já tem a apresentação que mais gostei de ler (e é em formato de índice!). Sem contar que Ingrid é uma amiga de juventude <3
os audiolivros aparecem bastante no meu relato ‘Catorze dias de caminhada no Jardim Botânico’. foi nessa época que escutei o meu primeiro da Rosa Montero.
atualmente, escuto livros no Scribd. já passei pela situação de usar o Storytel para poder ter acesso ao áudio de Literatura infantil (Zambra). em breve pretendo experimentar o mundo dos audiolivros em português no Audible.
Menina, nunca ouvi nenhum livro. Tenho uma resistência fortíssima, porque também acho os narrados por atores muito forçado, não natural. Mas vou tentar ouvir os que os próprios autores são os locutores. Beijos!!!
Tô aprendendo espanhol sozinha e esse texto chegou como um abraço. Gracias❤️