Terremotos e maternidade
#37 -- a adaptação da tetralogia napolitana para a TV; um ensaio sobre maternidade; Elena Ferrante e Jazmina Barrera
Semana passada, falei que estava vendo a terceira temporada da série A amiga genial, adaptação da tetralogia napolitana da Elena Ferrante, disponível na plataforma da HBO. Me confundi. Ainda estava na segunda parte, acompanhando o início da vida adulta das amigas Lila e Lenu. O italiano (e as partes em dialeto) me obrigam a ver os episódios com calma, sem distração, lendo toda a legenda que aparece na tela.
Só depois cheguei à adaptação do terceiro livro. Lenu está casada (senhora Airota), morando em Florença, vivendo num apartamento bonito, longe do bairro onde cresceu. Sem avisar, chega Pasquale acompanhado de Nádia. Um amigo de infância no bairro e a filha de sua professora do colégio. Não dizem de onde estão vindo e nem para onde irão depois. Ficam pro almoço. As cenas são carregadas de tensão.
Antes que Pasquale decida ir embora, ele tenta se comunicar com Dedé, a filha mais velha de Lenu, usando o dialeto. Elas não sabem falar napolitano? Você não ensinou a elas?, as perguntas são feitas em tom de confronto. Lenu desconversa. Não sabe se as filhas entendem. Se aprenderam por conta, também nunca mostraram que sabem falar.
Na primeira leitura da tetralogia, traduzida por Maurício Santana, imaginava como seria esse dialeto no original. Será que todos os leitores italianos entenderiam o napolitano? O texto em português tem marcações como “disse em dialeto” ou “estavam conversando em dialeto” para que o leitor saiba que o diálogo não aconteceu no italiano dito clássico.
A partir do que Elena Ferrante escreve nos ensaios de As margens e o ditado, com tradução de Marcello Lino, fico sabendo que ela se deparou com a impossibilidade de conseguir escrever trechos dos livros em dialeto napolitano. As falas pareciam forçadas, falsas. Sem conseguir passar a oralidade ao texto. O que deu pra fazer foi escrever num italiano com cadência napolitana.
Na cena da terceira temporada, a filha de Lenu não responde ao dialeto de Pasquale. Seja por desconhecimento, seja por recusa. E naquele momento percebo que não tenho certeza de quando os personagens estão falando em dialeto ou napolitano. Mesmo prestando atenção à cadência da fala.
Seis anos depois de ler A amiga genial pela primeira vez, sinto que o espaço para falar de Elena Ferrante ficou apenas para quem estuda literatura na academia. A febre não passou, mas enfraqueceu. Não sei. Realmente fico com essa sensação de que ao abrir a boca pra falar de Ferrante a pessoa precisa ter em mente um tratado costurando toda a obra de ficção, não ficção e as adaptações para o audiovisual, incluindo os filmes italianos da década de 90.
Me atualizando na série da tetralogia, depois de ver a primeira temporada logo no lançamento e deixar pra lá, passei a gostar mais do terceiro livro. História de quem foge e de quem fica foi uma leitura arrastada pra mim, o único que me deu certo trabalho como leitora. As histórias das duas amigas estão mais distantes. O contexto político é de uma ameaça fascista que, em resumo, aparece como um embate entre fascistas e comunistas. Acompanhamos a maternidade de Lenu.
Não faz muito tempo que ouvi o audiolivro Linea nigra, da escritora mexicana Jazmina Barrera. Lançado aqui com tradução de Silvia Massimini Felix, o livro é um ensaio sobre maternidade, artes plásticas e terremotos. É mais difícil parar para anotar partes de um audiolivro, mas dois trechos ficaram na minha cabeça.
Que o texto começou a ser escrito quando a autora percebeu que, naquele momento, ainda não havia tantos livros assim sobre o assunto. Literatura de maternidade nunca vai ser demais, disse em entrevista ao El País. Que seria impossível continuar o projeto de escrita iniciado antes da gravidez. E ela tinha acabado de receber uma bolsa para seguir com o outro livro. Escrever sobre maternidade era urgente.
O desenrolar da gestação, no ensaio, é intercalado com o processo de pesquisa de Jazmina sobre o ter-um-filho. Conhecemos também a vida e a obra da mãe da escritora: Teresa Velázquez, pintora. Em determinado momento da carreira, a mãe de Jazmina conquista um mecenas. Todos os seus quadros, produzidos a cada três anos ou mais, eram comprados por um certo colecionador.
Durante a gravidez da escritora, enquanto o ensaio é escrito, há um terremoto devastador na Cidade do México. O prédio que abrigava uma galeria particular com décadas de trabalho de pintura de Teresa Velázquez vai ao chão com o tremor de terra. Os quadros entre os destroços. Como lidar com a perda de um conjunto de obras quando pessoas morreram, quando pessoas perderam suas casas?
O que Teresa, pintora e mãe de Jazmina, conseguiu fazer foi ficar entre os voluntários que resgataram entre os escombros algumas das pinturas, praticamente todas danificadas, e pertences dos moradores do edifício. Objetos que seriam tratados como lixo, tratados como entulho, puderam ser recuperados. Um conjunto inteiro de louça permaneceu intacto. No ano seguinte ao terremoto, as telas quebradas, rasgadas, partidas foram exibidas na exposição Desastres artificiais.
Só na quarta temporada da série sobre a tetralogia napolitana verei na TV a cena do terremoto. Lenu e Lila grávidas, dentro de um carro para se proteger de possíveis desabamentos. Lila, com muito medo, usa pela primeira vez o verbo desmarginar. Terei que voltar a pensar em terremotos.
“Y yo creo que esa es una de las consignas del libro [Frankenstein, Mary Shelley]: la maternidad es ese terremoto que te lleva al caos de la identidad total. A partir de ese caos una tiene que ver cómo se reconstruye y cómo se recrea también en términos de arte, de escritura.” Jazmina Barrera em entrevista.
outras doses
doses de tiquira #36: FERRANTE, um relato sobre a tetralogia napolitana -- quando mudei a plataforma para a newsletter, recomecei a contagem dos textos. quase que coincide o número da edição sobre Elena Ferrante.
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Anemonações #4 — Viver é muito perigoso... -- notas de Arthur Marchetto sobre a vida, o amor e o diabo em 'Grande sertão: veredas', de João Guimarães Rosa.
Uma obsessão chamada Sally Rooney -- vídeo sobre a obra da autora que é o objeto de pesquisa no mestrado de Bárbara Bom Angelo.
Por que tantas pessoas precisam de óculos hoje em dia -- vídeo do site Vox, em inglês.