Catorze dias de caminhada no Jardim Botânico
#46 -- um diário de leituras, observações e tentativas de rotina
Dia 1 (uma terça-feira qualquer)
A ideia é simples: passar 30 dias caminhando no Jardim Botânico. Já tentei isso antes. Recomeçar o projeto me obriga a encarar um fracasso anterior. Da outra vez, abandonei o barco depois do décimo dia. Hoje foi um daqueles dias de chuvisco leve que não abala o habitante da cidade de Curitiba. Dei três voltas na pista de caminhada, escolhendo os caminhos certos para evitar os turistas e também o café que tem um preço em conta. Estou escutando a versão em áudio de um romance sobre as descobertas de uma lésbica tardia. O título não sei traduzir: In at the deep end (Kate Davies). No caminho para casa, reparei num ovo estatelado no chão. Apenas um ovo. Depois comecei a ler Flaneuse, da estadunidense Lauren Elkin, para dar um gás nos próximos passos. É um livro sobre mulheres ociosas, observadoras errantes normalmente encontrada em cidades.
Dia 2 (segunda -- não a segunda-feira seguinte)
Passaram-se muitos dias. Perdi a conta. Fui caminhar depois de ver um vídeo curto com o Drauzio Varella contando que a disposição ideal para fazer exercício não existe. A melhor parte do exercício é quando ele acaba. Saí na hora do almoço para evitar a preguiça do final da tarde. Muitos turistas visitavam o jardim em plena segunda-feira de março. Curitiba não é a cidade maaais turística do mundo. Deve ser curioso morar num lugar mais cobiçado e lá viver uma vida prosaica. Pensei no óbvio, Paris. Sair de manhã e caminhar vendo o Louvre do outro lado da rua. Antes de sair, li um texto da Anna Vitória sobre o Museo Reina Sofía, fiquei com a Europa na cabeça. Bastante calor na caminhada.
dia 3 (terça)
Na ida, o trem se aproximava do cruzamento com a avenida no caminho e corri pra atravessar para o lado do jardim mesmo que os carros ainda estivessem passando também. A buzina é muito forte, me assusta. Uma linha férrea cruza parte da cidade. Fui um pouco mais cedo, não tão mais cedo. Muito turista tornando lento o tráfego nos acessos à pista de caminhada. Vai bastante gente esse horário. Também estão com tempo livre, como eu. Não vejo as pessoas mais velhas que costumava ver quando ia bem cedinho. O sol está muito forte. Do tipo que faz os visitantes pensarem que Curitiba sempre tem desses dias bonitos. Terminei de ouvir o livro A filha única. O final me deixou contente, satisfeita com a leitura. Queria emendar com outro da Guadalupe Nettel, El huésped. Comecei a ouvir e não aguentei a narradora com sotaque clássico da Espanha como os áudios das aulas de espanhol que tinha na escola. Escutei então três capítulos de La ridícula idea de no volver a verte, narrado pela autora Rosa Montero. O sotaque dela também é da Espanha, mas não tem a afetação de um “narrador profissional”. Chegando em casa, escuto uma citação sobre Paula, meu livro preferido da Isabel Allende, quando Rosa Montero fala sobre o uso do luto para criar um tipo de arte que depois seria monetizado (de início, com julgamento; depois, entendendo a urgência da escrita). Uma corredora bronzeada cruzou meu caminho várias vezes. Me lembrou a personagem Lynn (Melissa Barrera) na série Vida.
dia 4 (sexta)
Dois dias sem ir, sem maiores explicações. Fui dar uma volta rápida na hora do almoço pra não perder o ritmo outra vez. Pra não perder tanto o ritmo. Vi pela segunda vez uma mulher que fica subindo e descendo uma ladeira enquanto pula corda. Essa é braba. Reparei nos pinheiros que foram plantados um pouco depois que me mudei para Curitiba. Estão enormes. Uma evidência de que já estou aqui há bastante tempo. Foram plantadas algumas espécies diferentes. Quando as mudas ainda não tinham crescido, não conseguia reconhecer se alguma delas seria do mesmo tipo de pinheiro que tinha na casa em que cresci. Quando me dei por gente, ele já era grande, mais alto que o telhado da casa. A gente brincava com o ditado que dizia que, quando o pinheiro ultrapasse a altura do telhado, o dono da casa morreria. Brincava porque a casa ainda estava no nome dos antigos donos. Meus pais estavam a salvo.
dia 5 (segunda)
Mais dois dias sem caminhar. Ao menos era final de semana. Hoje é o primeiro dia nublado do outono. Menos turistas, menos gente na pista de caminhada. A cada volta na pista, vejo visitantes frustrados no portão fechado do Jardim das Sensações. É dia de manutenção. Com o tempo mais fresco, consegui dar umas corridas breves e uma volta extra na pista. Na saída, chego perto dos pinheiros plantados na colina. A placa diz que estão presentes 19 espécies de araucárias existentes no mundo. Neste aviso a palavra araucária é usada como sinônimo para pinheiro? O que parece ser a árvore lá de casa é o pinheiro-de-crook. Um dos mais altos da colina. Lembro que muitas das mudas não pegaram de primeira e foram plantadas. A araucária clássica é tão pequena, frágil perto das outras árvores. Um bonsai de araucária.
dia 6 (terça)
Fui mais cedo, num horário em que a pista de caminhada está congestionada e os turistas ainda não chegaram para tirar foto com a estufa. Reparei num fenômeno não observado antes: senhores que caminham em trio, um ao lado do outro. Conversando, se apoiando. No segundo trio que passou por mim, notei que um dos senhores era o dono do prédio onde moro. (Nota do futuro: já não moro mais lá). Hoje tomo essas notas sentada num banco de madeira que não existia antes. Até a cor da madeira é diferente dos outros. Em 2017, quando comecei a frequentar o jardim já que o campus da minha faculdade ficava ali pertinho, o parque não tinha vários elementos que hoje estão aqui. Muita coisa mudou. Mas por que o parque haveria de estar pronto e sem mudanças desde então? Cada vez mais os espaços com grama deixam de ter apenas grama. Como as 19 espécies de araucária plantadas na colina. Ou o memorial instalado agora no dia 26 de março em homenagem a imigrantes israelitas e, em especial, aos integrantes da família Grinbaum que sobreviveram ao holocausto e depois se estabeleceram em Curitiba. Uma escultura com o Chai Judaico é rodeado por costelas de Adão recém-plantadas.
dia 7 (sexta)
Voltei depois dos piores dias da menstruação. No meio da tarde, o Botânico estava mais vazio que o normal. Atípico. Já vi mais gente em outros dias e horários ainda mais quentes. O problema não era o calor. Não sei. A pista de caminhada estava praticamente vazia. No começo, cruzava o caminho de apenas um cara, também caminhando. A tranquilidade me fez caminhar mais devagar, num ritmo de passeio. E a caminhada se colocou como um momento para pensar no que estou vivendo agora. Esse período de espera. Depois da demissão do antigo trabalho e esperando uma burocracia se resolver para começar o novo. Sem ter uma data fixa para começar. Por isso, posso caminhar no Botânico no meio da tarde de um dia de semana. Ou em qualquer horário que me dê vontade. Poderia vir duas vezes ao dia se quisesse. A espera tem sido angustiante. Essas voltas no parque têm me feito bem. Me movimento, dou voltas e voltas, escuto meus livros e chego em casa suada. Dá vontade de continuar no parque, não voltar. Decidi parar no meio da caminhada para comer alguma coisa no café do Senac. Nunca tinha experimentado bolo de pamonha. Meu fone parou de funcionar e hoje estou testando um sem fio pra ver se me adapto e compro um pra mim. Gostei. Controlei o tempo que faltava para terminar o capítulo que estou ouvindo do livro Ceninzas en la boca (Brenda Navarro) para casar com o tempo que demoro na volta pra casa.
dia 8 (sábado)
Deixei pra ir caminhar no final da tarde, acompanhada da minha namorada. O dia estava bonito, sabia que o parque estaria cheio. O final do dia lá é concorrido. Acompanhei o sol se pondo em várias tardes antes de ir para as aulas noturnas de contabilidade. T. ficou sentada na canga lendo O Hobbit. Dei três voltas na pista de caminhada ouvindo Ceninzas en la boca e cheguei a uma parte conturbada na história que provavelmente vou precisar ouvir de novo para entender. Não queria demorar na caminhada para não estar no parque quando ficasse escuro. Não levamos blusa de frio. Ficar na grama foi tão agradável que combinamos de voltar amanhã e fazer um piquenique.
dia 9 (domingo)
Hoje a caminhada foi apenas na ida ao Jardim Botânico, na escolha de um lugar para armar o piquenique e na volta para casa. Fiquei lendo os ensaios reunidos de Virginia Woolf em O valor do riso. Gostei da carreira de textos sobre ficção moderna, ler contemporâneos, Jane Austen, Charlotte Brontė e sobre como se deve ler um livro. T. ainda lia O Hobbit. Em determinado momento da tarde, interrompemos as leituras para observar um grupo de amigos que conseguiram prender uma bola em meio a galhos de uma árvore. Uma das garotas ofereceu o tênis para tentar desprender a bola e acabou que os dois pares do sapato dela também ficaram na copa da árvore. Tentaram jogar galhos, outros sapatos, garrafas com e sem água. As tentativas perderam o tom de brincadeira e nada. Eventualmente acabaram conseguindo que a árvore devolvesse a bola e o par de tênis. A pobre árvore já devia estar cansada de receber golpes com uma garrafa de água de 1,5 litro pela metade. Jogar bola é uma das atividades proibidas no Jardim Botânico. Junto com andar de bicicleta, passear com cachorro, patinar. Já presenciei todas essas contravenções.
dia 10 (segunda)
Vim mais para o final da tarde. Recomecei o capítulo de Ceninzas en la boca que não entendi muito bem da última vez. Em casa, estava lendo sobre a história do Botânico (não é um parque!) e enquanto dava voltas pela pista me peguei em dúvida sobre o que existia lá antes da criação do jardim, em 1991 (por acaso, o ano em que nasci). Era um texto sobre a criação de áreas verdes (equipamentos urbanos) numa época em que a conservação ambiental (e proteção das nascentes dos rios que atravessam a cidade) eram uma prioridade da administração municipal e depois acabaram servindo como propaganda para que Curitiba fosse vista como uma capital com qualidade de vida. Sobre a dúvida do que existia antes do jardim, fiz uma busca rápida enquanto estava numa descida propícia para uso do celular. Aqui já foi jardim e bosque do Barão de Campanema (conheço pelo nome de um viaduto). Imagino que fosse um espaço vazio, com vegetação relativamente preservada, perto de um conjunto de habitação popular, que no texto aparecia como “a maior favela de Curitiba”. A criação do parque, com desapropriação de pessoas que moravam no entorno, serviu para conter a expansão da favela, que ficou restrita ao que hoje conhecemos como Vila Torres (lugar que conheço de carnavais, a festa é tradicional por lá). A criação do jardim possibilitou a mudança de perfil do antigo bairro Campanema e hoje Jardim Botânico, gentrificado nos anos 90. E possibilitou também a construção dos edifícios residenciais que circundam parte do jardim. Todos com nomes tipo Varandas do Jardim Botânico, Jardim Botânico Residence, Condomínio Homespace Botânico. É por essas e outras que me perco na leitura. Dei uma pausa no livro para escrever sobre a origem do não-parque, sentada de frente para um dos lagos. Vou retomar o livro no caminho de volta a casa. Já estou quase terminando.
Um último comentário por hoje: em mais algum lugar do Brasil se fala massa grossa para se referir ao pão francês? Um pessoal com sotaque bem maranhense passou aqui agora falando sobre vinas e pães massa grossa/fina.
dia 11 (terça)
Falta pouco para escurecer e estou sentada em um banco do jardim, perto do maior lago. Experimentei a pista de caminhada no sentido contrário. Sempre seguia o sentido horário, hoje provei o anti-horário, que parece ser o predileto dos demais frequentadores. Continuo preferindo o caminho de sempre. De qualquer forma foi bom tentar algo novo. O pior desse outro sentido é que as maiores subidas do caminho ficam para o lado da pista que é compartilhado com a turistada. Mais gente atrasando o caminho, parando para tirar fotos das pobres cotias (aqui elas são tímidas). Vim até o botânico ouvindo música (a trilha sonora do filme Mamma Mia!) e descobri que bastam duas faixas para chegar de casa até aqui. Logo cansei e fui para o audiolivro. Terminei Ceninzas en la boca. Não faltava muito. Acontece um suicídio no livro e a narradora (irmã do rapaz que se matou) acaba imaginando o som que deve ter feito o corpo do irmão ao se estalar na calcada. Na narração, feita pela própria autora, cada som é bem diferente um do outro. Ler (não escutar) esses sons deve ter um efeito bem diferente.
Así: pum. No, así: pooom. No, así: crag. No, así: drag, dragut. No, así: paaam, clap, crash, bruuum, brooom, gruuum, grrr, grooo… Y un eco. No, no hay un sonido que describa el ruido que se escuchó.
Agora escuto a música Sympathy (Vampire Weekend) que perpassa todo o livro.
Antes de sair de casa, reli O poder curativo das caminhadas, texto da newsletter Nevoeiro. Carol Bensimon fala sobre a diferença de caminhar na cidade e na natureza. Mais estímulos, menos estímulos. Aqui tenho um pouco dos dois. O caminho movimentado até aqui, que me faz cruzar até a linha do trem. A entrada que me faz dividir caminho com turistas (uma corrida com obstáculos) até chegar à pista de caminhada, que com uma ou outra exceção, tem apenas pessoas se movimentando. Com mais ou menos anos de vida. Com mais ou menos roupa. Com mais ou menos velocidade. A pista não é longa e eu gosto dessa repetição de dar voltas até pegar no tranco, acelerar o passo, chegar a um nível extremo de concentração no audiolivro da vez. Sabendo o que vem pela frente. Sem precisar me preocupar com tropeços e esbarrões. Apenas ouvir música me deixa entediada. E essa ser a melhor hora do dia para escutar livros me faz tornar esse momento mais meu. Não é só para fazer exercício. E sim dar uma volta, ver gente, pegar sol, tornar a visita ao jardim como parte do cotidiano. Dei apenas três voltas porque já tinha caminhado mais cedo no centro, resolvendo algumas pendências. Fui embora quando a estufa já estava com as luzes acesas, a lua alta no céu.
dia 12 (quarta)
Vento gelado. Dá pra caminhar bastante sem morrer de calor. Inventei de intercalar um pouco de corrida e não aguentei o tranco. Dei as costumeiras cinco voltas na pista só pensando em completar o objetivo que estabeleci para mim mesma. Numa das voltas, uma turista me parou para perguntar até que horas o parque fica aberto. Não é um parque, deveria ter respondido. Pois o jardim fica até 19h. A turista falava em português de Portugal e demorei aqueles segundos intermináveis para me situar na linguagem. Estava ouvindo espanhol com sotaque argentino bem na hora. O sotaque é da narradora do livro que comecei a ouvir hoje. Cometierra, de Dolores Reyes. Não estou tão envolvida na história por enquanto. O livro é curtinho, vamos ver, são menos de quatro horas de áudio. Muito vento, já não dá para ficar de bobeira antes de voltar pra casa. Vou comprar ração para os gatos. Com a luz bonita do final de tarde no outono, voltei a ver por aqui parte importante da fauna do local: os fotógrafos de ensaio. O de hoje fotografava uma grávida.
dia 13 (uma outra terça, no final da tarde)
Voltei para uma volta longa no Botânico depois de alguns dias sem vir. Não superei o feriado e o tempo chuvoso que se armou na cidade até ontem. Tive que vir hoje quando vi o sol aparecer. Também precisava comprar ração para os gatos. Poucos dias sem acompanhar o jardim diariamente e, logo na chegada, vejo que as folhas das cerejeiras começaram a cair. Faltam poucos meses para a floração. Contei 31 cerejeiras no caminho (algumas devem estar floridas agora -- essa é outra nota do futuro). Sol, vento gelado. Tava rolando uma manchete sensacionalista esses dias, afirmando que o jardim ficaria temporariamente fechado para manutenção. Só a estufa foi fechada, e nem é a parte mais interessante daqui. Ver a estufa de fora é mais interessante do que de dentro. Lá também não rende boas fotos apesar da vista privilegiada para um jardim no modelo francês. Ainda não vi nada de reforma, só uns sacos de areia ali perto da estufa. Para retomar as caminhadas, resolvi encarar o início das vinte e três horas de áudio do livro Nuestra parte de noche,da Argentina Mariana Enríquez (pra seguir no mesmo sotaque de Cometierra). Os passos por caminhos conhecidos se encaixam muito bem com o início de um livro. A concentração lá em cima para conseguir acompanhar a fuga de um pai com o filho, uma jornada de carro que tem início em Buenos Aires numa manhã de domingo.
dia 14 (terça feira, outro final de tarde)
Não foi só a chuva que interrompeu de novo minha rotina de caminhadas. Estou num momento de espera. Aguardando o e-mail milagroso que vai, enfim, me avisar o dia para começar no novo trabalho. Sigo sem qualquer previsão. A angústia de não ter controle sobre esse processo admissional me paralisa. Saí de casa para ir a uma sessão de fisioterapia em outro bairro. Acabei saindo mais cedo (pensei que a sessão seria uma hora antes) e tive tempo para um café perto da clínica. É um desses dias em que a chuva parece mais forte quando você está dentro de casa. Do lado de fora, não é tão ruim assim. Chuvisco na maior parte do tempo. Curitiba é uma cidade bem servida de marquises. Na pressa, não peguei livros nem fone de ouvido. Também tirei da bolsa o caderno de anotações para não correr o risco de molhar as folhas com respingos do guarda-chuva. Uso aquelas canetas de tinta que borram em qualquer contato com a água. Faço fisioterapia nos músculos mastigatórios por causa do problema na articulação temporomandibular. Costumo comparar esse problema a ter dois joelhos capengas, um em cada lateral do rosto. Uma profissional da saúde precisa manipular músculos, arcada dentária e palato no céu da boca para que o quadro tensional da mandíbula dê uma diminuída e eu consiga abrir mais alguns centímetros de boca. A meta é comer peças de sushi sem passar nervoso. Como essa é uma condição crônica diretamente afetada pelos meus altos níveis de estresse e ansiedade, nos dias em que saio de casa para algum tratamento de DTM, me recuso a entrar no meu estado natural de pessoa à beira de um ataque de nervos. Poderia aplicar esse modo de ser para todos os dias da minha vida, mas só tenho conseguido para os dias de fisioterapia e de consulta com a dentista bucomaxilofacial. Me sinto tão bem assim. Botei na cabeça que viria ao parque (opa, jardim) caso o tempo firmasse. Deu certo. Saindo da clínica, andei para o lado errado da rua e quando percebi o erro já era tarde demais. Teria que pegar dois ônibus e não mais um para voltar pra casa. Tudo bem, sem neurose hoje. Passar pelo terminal de ônibus garantiu que eu pudesse sentar no meu querido e odiado banco curitibano. Hoje me questionei por que eles ficam do lado esquerdo do veículo. Como uma pessoa destra, o meu ponto de apoio é do lado direito do corpo e sinto que vou cair do banco a cada curva.
Com a chuva dos últimos dias, as plantas do Jardim Botânico estão encharcadas. Não entendo de plantas. Elas me dão a impressão de que estão felizes com tanta umidade. Não tenho certeza. Afinal, existem espécies exógenas aqui. Mas já estão há tanto tempo na cidade que devem estar (ou deveriam estar) acostumadas. Assim como eu. O jardim foi fundado no ano em que nasci. Há de existir por aqui alguma planta sofrendo de desarraigo pelo mesmo tempo que eu tenho de vida, 31 anos (agora, 32).
Vim dar uma volta com roupa de passeio mesmo. Andei pelo caminho de sempre anotando essas palavras, aproveitando a oxigenação do cérebro. Os caminhos vazios não me deixariam atrapalhar nenhum outro andante com esse ritmo mais lento e falta de reflexo de quem caminha olhando para a tela de um celular. Normalmente caminho ouvindo livros, mas escrever também é bom. Poderia praticar mais essa escrita andante. Os dedos precisam correr para dar conta do que passa na minha cabeça. A urgência de editar e revisar e reler é deixada de lado. O que importa é a linha que está sendo escrita no momento. O próximo passo é o mais importante durante uma caminhada.
Terminando a volta na pista de caminhada, consigo ver no horizonte os prédios da região central da cidade, inclusive um de 28 andares onde já trabalhei e por onde passei hoje mais cedo. Penso no trecho de um ensaio de bell Hooks no livro Pertencimento que guardei para pensar nas minhas voltas pelo Botânico. Caminho aqui para me apropriar de um ponto turístico perto da minha casa, para estreitar uma relação com o meu bairro e com a cidade onde escolho morar no momento.
Ao caminhar, consigo demarcar minha presença, como alguém que reivindica a terra, criando uma sensação de pertencimento, uma cultura do lugar.
Terminei a volta solitária na pista com calor debaixo do suéter. Sentei num banco (já nem tão molhado) de frente para uma ave que eu nunca tinha visto aqui no jardim. Tirei uma foto para tentar identificar depois. Vejo uma ou outra pessoa caminhando e correndo. Pessoas tirando foto com a estufa. Não são como os turistas de sempre. Esses são os perseverantes, turistas mesmo em dia de chuva. Alguém passando disse que a ave é um gavião. Foi o que pensei quando vi. Não confio nas minhas habilidades de observação de pássaros. Bom, pesquisei aqui e é um gavião-urubu (usei as palavras-chave “gavião de cabeça vermelha”). Ontem mesmo terminei de ler um ensaio de Jonathan Franzen sobre observação de pássaros na China, coincidência. Fato é que a fauna do Botânico está mais saidinha hoje com a falta da turistada. Uma cotia até me mostrou seu esconderijo no bosque de preservação ambiental que fica no centro da pista de caminhada. Um borrachudo me picou na mão direita e decidi ir embora. O espertinho deve ter me visto escrever sobre ser destra. Apareceram raios de sol. O sol da boca da noite. São seis horas da tarde. A ave era um carcará.
mais doses
Estou lendo wanderlust - a history of walking (Rebecca Solnit) e ainda em busca de outro lugar pra caminhar nos arredores da casa nova.
Reencontrar um antigo eu -- Liliane Prata sobre renovar a carteira de motorista e ser/não ser uma pessoa que dirige.
Texto de internet 💻 -- Vanessa Guedes abriu inscrições para a oficina ‘Revelando segredos: blogs, newsletters e o combustível da escrita’.
Um ensaio etnográfico sobre ventos, visagens e o centro histórico de São Luís -- a autora, Gabriela Lages Gonçalves, é uma amiga de infância <3
Adorei o texto! Acho que até hoje eu só fui no Jardim Botânico na condição de turista ou de guia de turistas haha é interessante ver o jardim da perspectiva de quem passa por ele sempre. Me fez pensar aqui na minha vizinhança com o Passeio Público. Desde que eu vim pra essa parte do centro digo pra mim mesma que vou caminhar no passeio todos os dias (risos). Certinho assim nunca aconteceu, mas tem momentos que eu vou com mais frequência. Já deu vontade de voltar a caminhar lá e de fazer um diário também haha
Você está me atiçando a tentar os áudio livros em espanhol (meu espanhol nunca foi tudo isso, e a falta de prática está tornando piro do que já foi). Também está me deixando com vontade de caminhar, mas ainda tenho medo do meu bairro (moro aqui há seis meses que parecem cinco anos). Adorei o texto <3