ilustração: Maria Luque
Belo mundo, onde você está (Sally Rooney, na tradução de Débora Landsberg) foi a leitura noturna de umas semanas atrás. O tipo de livro que levo pra cama é aquele que não faço questão de prestar atenção em todos os detalhes da história. Posso pegar no sono e continuar no dia seguinte sem me preocupar em fazer anotações. A trama não pode ter um ritmo acelerado. Preciso me desligar, não continuar lendo para saber o que vai acontecer em seguida. Apenas livros em português. Melhor que seja no kindle, assim posso deixar as luzes do quarto apagadas. O livro sempre à disposição caso desperte de madrugada com os miados de um gato e depois tenha medo de nunca mais pregar os olhos de novo.
O meu primeiro contato com a escritora foi na leitura de Pessoas normais e Conversas entre amigos no finalzinho de 2019. Estava lendo Conversas entre amigos, o que mais me agradou entre os dois, quando o kindle travou e parou de funcionar. Tive que terminar o livro pelo celular. Foi um pequeno desastre pessoal causado pela Sally Rooney. Até demorei a voltar aos livros digitais. Apesar de ter ficado preocupada com a existência de uma maldição envolvendo livros irlandeses, o aparelho atual sobreviveu à leitura de Belo mundo, onde você está. Ainda bem.
A amizade entre Eileen e Alice foi o que mais me interessou no livro. Elas são as protagonistas, e os caras com quem elas se relacionam também aparecem com destaque na história. As duas se conheceram na faculdade e dividiram apartamento nesse período. Anos depois, elas não moram mais na mesma cidade, têm um padrão de vida bem diferente uma da outra e se correspondem por e-mails para falar sobre colapso de civilizações, crise imobiliária, jeitos de encarar o mundo. Não temos acesso às mensagens que provavelmente enviam pelo celular.
Capítulos sobre os acontecimentos nas vidas delas se alternam com os tais e-mails, ora escritos por Eileen, ora escritos por Alice. A correspondência entre elas é cheia de divagações incomuns, piras sobre temas muito específicos, relatos de longas pesquisas na wikipédia. A autora pesou a mão mesmo. Mas deu pra desconsiderar esse detalhe. Esses e-mails talvez seriam diferentes se as personagens escrevessem newsletters para desaguar todos esses pensamentos profundos sobre a humanidade.
*
Um pouco antes de começar esse livro, reencontrei pessoalmente duas amigas de faculdade. Duas vezes em menos de um mês. Um susto depois de tanto tempo sem nos vermos. Nessa vida de mudanças e desarraigo, tenho amizades espalhadas por aí. Ainda separo os amigos entre os que já vi depois do período de isolamento social e os que não vejo desde antes da pandemia. Não é tão simples reencontrar todo mundo.
Hoje, eu e essas duas amigas nos dividimos em três cidades: São Paulo, Curitiba e Florianópolis, onde fizemos faculdade juntas. Não nos aproximamos logo no começo do curso. Foi uma amizade desenvolvida aos poucos. Demorou a engrenar. Eu tinha expectativas altas sobre as amizades para a vida toda que faria durante a graduação. Não só porque ali era o lugar onde poderia conhecer gente com gostos parecidos, aspirações em comum. Tinha um exemplo em casa. A minha mãe mantém amizades iniciadas na juventude. A faculdade seria a minha grande chance de ter isso.
*
Não chegamos a morar juntas. Quer dizer, não estou considerando o tempo que passei na casa delas de forma provisória. Em Floripa, na casa de uma, antes de encontrar um quarto para alugar no último semestre da faculdade. Em São Paulo, na casa de outra, justo antes de me mudar para Curitiba. Não somos um trio. Ficamos próximas. Continuamos. Cada vez mais próximas, com mais afinidades. Quinze anos atrás entramos no curso de jornalismo e cada uma largou a profissão à sua própria maneira. Relacionamentos começaram e terminaram. Um continuou. Mudamos de cidade e de país. Voltamos. A relação de amizade foi rearranjada um par de vezes.
A distância geográfica que nos separa é também virtual. Aos vinte e pouquinhos, nos víamos praticamente todos os dias, sem precisar combinar os encontros. A vida de então proporcionava toda uma convivência de sair para festa com uma, ver novela na casa da outra, passar quarenta minutos juntas na fila com as duas, esperando para almoçar no restaurante universitário. Difícil transpor tudo isso para o online. Não trocamos e-mails como as personagens de Sally Rooney, nem como personagens de Meg Cabot (eu adoro aquele livro em que um cara do TI decide invadir a privacidade alheia e acompanhar por meses a troca de mensagens de duas amigas pelo sistema da firma). No máximo, fazemos ligações interurbanas como se estivéssemos batendo papo no telefone de parede na cozinha de casa.
Na leitura de Belo mundo, onde você está, observei como as amizades podem evoluir. O que tenho com essas duas amigas é uma relação de familiaridade. Futuras amigas da velha guarda. Nos conhecemos num período de transformações. Observamos uma à outra no início da vida adulta. Assistimos de perto ao amadurecimento de cada uma. Acompanhamos o processo de nos tornarmos quem somos agora.
*
Finais de semana prolongados são curtos para dar conta de entender o que mudou na gente, o que continuou igual. Um intensivão de convivência. Tardes arrastadas com conversas para esgotar toda a camada superficial de assuntos pendentes. Até que essa barreira é ultrapassada e surgem os temas difíceis, antes evitados. É uma tentativa de antecipar as conversas que vamos querer ter nas próximas semanas. Bem que eu queria ter falado disso quando a gente tava junta. Aquilo que ia me deixar com vontade de marcar uma cerveja depois do trabalho só pra dar uma desabafada. Chegar dizendo: sabe o que eu tava pensando essa semana? Sabe o que eu tava pensando nos últimos dois anos?
*
Mais para o final do livro da Sally Rooney, Eileen e Alice se reencontram na casa de frente para o mar em que Alice está morando. É uma quebra no ritmo na leitura. São alguns capítulos seguidos em que as protagonistas estão interagindo em jantares, passeios, momentos de ócio. Senti falta das trocas de e-mails, já estava acostumada aos devaneios incomuns nas amizades que conheço de perto.
Pouco antes de se despedirem, a visita chegando ao fim, elas “ficaram sentadas na escada por um período, caladas, ou falando à toa de coisas que haviam acontecido muito tempo atrás, discussões bobas que tiveram, pessoas que conheciam, situações das quais riam juntas. Conversas antigas, já repetidas inúmeras vezes. Depois se aquietavam de novo”. Esse trecho resumiu meu feriado do sete de setembro, junto com a parada militar que passou aqui na frente de casa.
Lá em agosto, quando nos vimos juntas pela primeira vez em muitos anos, algo que não esperava aconteceu em mim. Em estado de alerta, sem saber direito como seria o reencontro depois de tanto tempo, meu maxilar doeu todos os dias em que estive em Florianópolis. Não esperava por essa. Nem tinha levado meu remédio pra dor. Toda noite, pedi um comprimido para a minha amiga e precisava contar que estava com dor na mandíbula. Não quis falar o que estava me incomodando porque nem eu sabia naquele momento. Um pouco de medo de já não conseguir me encaixar. Como um revival ruim de uma série do coração (Gilmore Girls, estou olhando para você).
Eu só quero que as coisas voltem a ser como antes, Eileen explicou. E que a gente volte a ser jovem e morar perto, e que nada seja diferente. Alice deu um sorriso triste. Mas, se forem diferentes, podemos continuar amigas?
mais doses
Livros de viagem -- no final de semana passado, encarei um combo de trajeto de ônibus noturno + viagem de carro até o Mato Grosso do Sul para ir num casamento e escolhi algumas leituras relacionadas ao tema: Paixão simples (Annie Ernaux) e Virginia Woolf & Vita Sackville-West: cartas de amor. O que acabei lendo foi o livro que levei de intruso, o mais recente de Guadalupe Nettel, Los divagantes -- ocho relatos sobre el desarraigo o cómo navegar sin brújula.
Amiga de juventude -- reli esse conto que dá nome a um dos livros de Alice Munro. A história é narrada por uma filha que repensa alguns contornos da sua relação com uma mãe já falecida. Essa mãe, debilitada antes da morte, escrevia cartas inacabadas para amigas de longa data. “Eu me lembro de ver uma carta que começava assim: Minha amiga de juventude. Eu não me lembro para quem era. Todas eram amigas de sua juventude.”
Ser algo além de filha -- notas a partir do romance "Diorama" de Carol Bensimon. No ano passado, também escrevi um pouco sobre esse livro da Bensimon: Dois livros sobre animais.
A história de quando fiquei seis meses sem celular.
Sobre Sempre Susan, se levar a sério e outras dicas de leitura.
Las palabras del puerto: un paseio de Arelis Uribe por Valparaíso (Chile) com Rúben Darío, Gabriela Mistral e Roberto Bolaño.
Que maravilha de texto, Lu! E aí, o que achou de Los divagantes? Estou bem a fim de começar 😘