Força obsessiva da mandíbula do crocodilo
#43 -- a zine que produzi numa residência cultural e uma disfunção temporomandibular
Fiz uma zine. Passei as duas tardes de um final de semana numa residência de zine (zinência, para os íntimos). Estava precisando mesmo de uma imersão num ambiente criativo. Com a apresentação de um panorama sobre fanzines e a proposta de exercícios inventivos, fui instigada a pensar em processo criativo a partir das publicações independentes. Nem todo mundo era da escrita. O convívio com pessoas diferentes e com interesses em comum foi uma das melhores partes da experiência.
A sala em que nos reunimos, e onde desenvolvemos boa parte das atividades, tinha o pé direito alto, paredes expostas de tijolinho, mesas dispostas num caos organizado com potes de tinta e recortes de revistas. A residência aconteceu num espaço cultural aqui no centro de Curitiba chamado Alfaiataria. Na segunda-feira seguinte, quando cheguei ao trabalho e dei de cara com as duas telas do computador, senti o baque. Como faz falta uma rotina com momentos de incentivo à criatividade, à escrita, à imaginação. Notei a minha dificuldade de inserir momentos lúdicos na minha semana. A leitura já nem conta. É um hábito antigo, viciado. E também solitário.
No domingo, cada uma de nós deveria produzir uma zine. O tema que martelava na minha cabeça e que acabou indo parar no papel foi a minha mandíbula. Tudo indica que já nasci com esse problema na articulação, mas foi um procedimento complicado (e desnecessário) para a retirada de um dos meus sisos que provocou o quadro que me acompanha há quase dez anos. A disfunção na articulação temporomandibular que me causa dores, afeta o tanto que eu consigo abrir a minha boca para comer ou faz com que os músculos da boca fiquem cansados depois de falar e rir numa conversa mais longa. Sem contar a década de estresse e ansiedade acumulados nos cantos do rosto.
Uso uma placa de bruxismo para dormir que, se não me engano, vi pela primeira vez na televisão num episódio de Crazy Ex-Girlfriend. Infelizmente a série foi tirada da plataforma antes que pudesse confirmar a informação. Ficou em mim a sensação de ter uma conexão com a protagonista em crise. Não sou de ranger os dentes. O meu lance é apertar a boca, arcada dentária contra arcada dentária. Dormindo ou acordada, tanto faz. Passo o tempo todo lutando contra o instinto de contrair essa parte da musculatura. Um impulso de preocupação, mais discreto do que o franzir de cenho.
Fiz algumas sessões de fisioterapia para destravar os músculos mastigatórios e perguntei para a fisioterapeuta que me atendia se a tensão acumulada nas minhas bochechas era similar ao dos demais pacientes de DTM. Esperava ouvir que era sempre assim. Pelo menos entre os meus. Mas a minha tensão era maior. Impressionante a força aplicada nos seus músculos, já ouvi mais de uma vez. Vivo num constante estado de alerta, e cada contratempo ou chateação vai direto para a mandíbula. O único jeito de resolver as dores e incômodos é parar de me estressar. Tranquilo.
Percebo como sou uma pessoa diferente nos dias de consulta com a dentista bucomaxilofacial. Saio de casa mais leve, não tem atraso que me faça perder a calma. Uma vez cheguei no consultório e a atendente havia marcado o atendimento para o dia seguinte, na data errada. Em meio a muitos pedidos de desculpas, expliquei pra ela: quando me comprometo a tratar do problema na mandíbula, vou pra rua com o lema de hoje nada vai estragar o meu dia. E, por consequência, nada vai me fazer apertar os dentes, nada vai me deixar tão nervosa a ponto de forçar os estalos que voluntariamente posso provocar na mandíbula porque a minha articulação está fora de lugar. Bem que eu poderia ser assim também nos outros dias. Só consigo aplicar essa resolução em dia de tratamento.
Sem perspectiva de uma cura milagrosa, já que as cirurgias são extremamente invasivas e nem garantem um resultado satisfatório, ter esse problema me obriga a olhar pra mim. Prestar atenção. Se começo a ter muitas dores de cabeça e preciso recorrer a remédios e compressas mornas, sei que deixei os cuidados de lado. Dormir sem a placa já não é uma opção. Mantenho a consciência corporal para não estalar a mandíbula ao me concentrar. Sigo na terapia. Tento fazer alguma atividade física, nem que seja sair para caminhar no parque. Faço os exercícios que a fisioterapeuta me passou. Triste é não poder receber sempre o tratamento com correntes elétricas suaves que irradiam pelo rosto.
Deitada na maca do consultório de fisioterapia, com a luz apagada, recebendo os “choquinhos” e observando um quadro de anatomia humana com dizeres em japonês, eu pensava no que escreveria sobre como é mais fácil entrar nesse estado de relaxamento no início do dia quando me forçava a não perder uma sessão. A residência de zine veio antes do texto. Um final de semana corrido, sem apertar a mandíbula. E, inspirada em alguns trechos do livro Mandíbula (Monica Ojeda), das minhas sessões de fisio e das leituras técnicas que fiz sobre a disfunção, surgiu a zine Força obsessiva da mandíbula do crocodilo.
O tema mandibular já estava me rondando desde antes de participar da zinência. Foi no sábado que decidir falar do assunto na zine. Num dos exercícios propostos pelas facilitadoras (Daniele Rosa e Emanuela Siqueira), deveríamos fazer cinco recortes das revistas distribuídas nas mesas. Logo à minha frente, estava uma edição de revista antiga sobre saúde e recortei o seguinte: os dizeres o “tique” nervoso; as bocas de um casal formado por homem e mulher; uma imagem de um prato de sopa; um desenho de uma mãe pegando na cabeça do filho; e um grupo de seis mulheres sorridentes. O ato de estalar voluntariamente a mandíbula é um tique nervoso pra mim. Preciso me controlar para não buscar conforto na sensação do estalo.
Uma tarde passa voando. Enquanto tentava pensar num plano de trabalho para desenvolver a zine, naquele domingo, recortei bocas e mais bocas de jornais e revistas velhos. Consegui recortar até a boca da Isabel Allende, uma das minhas escritoras preferidas, da capa do suplemento cultural do Estadão. A boca dela está na colagem da segunda foto, veja se consegue encontrar. Queria ter levado para escanear o molde da minha boca utilizado para confeccionar a placa de acrílico que uso para dormir. Não achei a réplica da minha dentadura. O jeito foi usar imagens dos exames que fiz no início do tratamento, mais especificamente da ressonância magnética que, inclusive, chegou a mostrar parte da minha massa encefálica. Foi quando tive a certeza de que sou portadora de um cérebro.
O título e o foco no crocodilo surgiram a partir do livro de Monica Ojeda, sobre um grupo de adolescentes que criam toda uma piração com um deus branco e a mandíbula de crocodilos que guardam seus filhotes na boca. A história em si não me pegou tanto. Mas fiquei pra mim que ainda usaria todo esse papo sobre mandíbula. A professora de ensino médio que aparece no início do livro sequestrando uma de suas alunas também tinha problema na ATM. Quem sabe uma placa de bruxismo usada toda noite não teria resolvido metade de suas tormentas. Anotei num papel um trecho grifado durante a leitura, em espanhol: “obsesionada con el poder de la mandíbula de un cocodrilo”. Esqueci o papel em casa. Na hora de reproduzir o trecho para o título da zine, escrevi de uma vez no caderno de anotações: força obsessiva da mandíbula do crocodilo.
O formato em livrinho foi o que consegui pensar como possibilidade naquele momento. Outras colegas de oficina experimentaram mais na forma, reproduzindo um bloco de notas de celular ou criando uma pasta de arquivo com rancores. Pensar que apenas grampei folhas juntas e transformei numa zine o que poderia ser uma edição de newsletter me faz pensar que não saí da minha zona de conforto. Que caminho besta desse pensamento. Naquela tarde, saí de um estado de desespero pensando que não conseguiria entregar nada e cheguei a um resultado que hoje ainda me deixa satisfeita. E, de quebra, me restou a vontade de voltar a mexer com zines em breve. O formato newsletter, e o tipo de texto que publico por aqui, combina com impressos publicados e distribuídos de forma independente.
Na semana seguinte à zinência, houve uma exposição com os trabalhos desenvolvidos na oficina. Nunca tinha participado de uma, não como alguém expondo seu trabalho. Ver pessoas folheando uma criação minha, chegando com comentários mesmo que eu tivesse a decência e timidez de não perguntar o que tinham achado. É facil disparar um texto na internet e não ver a reação das pessoas enquanto leem o que escrevi. Cara a cara, a intensidade é maior. E assusta. Importante lembrar de não apertar a mandíbula.
*Antes do fechamento desta edição, pouco depois de tirar as fotos que aparecem aqui, o gato Estalinho Jr vomitou na matriz da zine de um jeito que não deu pra salvar. O gato está bem. A zine foi pro lixo.
da semana
lendo: Depois de escutar o audiolivro de Literatura infantil, de Alejandro Zambra, peguei um de ensaios de Jazmina Barrera, Cuaderno de faros. Difícil superar o casal Barrera-Zambra. Títulos disponíveis no aplicativo Storytel.
assistindo: O Ultimato - Queer love (Netlix) comprova a minha ideia de que qualquer reality show seria ainda melhor de ver com participantes LGBT+. É fascinante observar pessoas que realmente acreditaram ser possível resolver problemas de relacionamento na frente das câmeras. Também estou acompanhando os episódios semanais de Os outros (Globoplay), uma briga de vizinhos que escala numa mistura das minisséries Treta (Netflix) e Justiça (também da Globo).
mais doses
- Todas as zines produzidas na zinência estão disponíveis no site da Alfaiataria.
- Biografia é repovoar o passado: O trabalho de ourivesaria e lapidação de uma futura biografia sobre Nathalia Timberg.
- Respondendo se um robô faria o meu trabalho: adorando acompanhar a newsletter de Laurinha Lero.
- Quem é dono de uma obra criativa?
- A xará
, também radicada em Curitiba, vai cobrir o festival Olhar de Cinema deste ano na newsletter Andanças.
Eu adorei a sua zine, ficou linda! E o texto também, maravilhoso como sempre.
Obrigada pela citação nos links, xará <3
Não esperava pelo final com o gato vomitando na zine, poxa. Mas adorei ler o processo, tava com saudade de te ler!