Um final para essa conversa sobre ter um lugar no mundo
#42 -- notícias de curitiba; sotaque de são luís e uma anedota sobre chaves (com certeza isso não é um final)
Depois de cravar que São Luís é o meu lugar no mundo, começo a pensar em como a minha relação com Curitiba, onde moro atualmente, se encaixa nessa vida de desarraigo. Li recentemente Afetos ferozes (Vivian Gornick, traduzido por Heloisa Jahn) e me surpreendi com as palavras finais do livro. “Estou metade dentro, metade fora”, parecido com o título do texto passado. Metade lá, metade cá. Mas o assunto em questão é o relacionamento entre mãe e filha, que conduz todo o livro.
Comprei um sobretudo para me antecipar ao frio que está por vir. Escolher o que vestir aqui exige planejamento. Todos os dias, faço um cruzamento entre as informações objetivas da previsão do tempo e lembranças diversas de como meu corpo reage a diferentes condições de temperatura e pressão.
Volta e meia, acabo pensando que lá em São Luís era mais fácil. A única mudança é poder ser calor com chuva ou sem chuva. Calor o tempo todo. A média da temperatura é tão alta que me deixaria cansada só de caminhar mais rápido até o ponto para não correr o risco de perder o ônibus. O calor ludovicense é inimigo de andanças. No clássico da literatura maranhense, Tambores de São Luís, Josué Montello escreveu a história de um homem que atravessa alguns bairros da cidade para conhecer o trineto. Não à toa, essa caminhada acontece de noite e de madrugada.
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Comecei um trabalho novo. É presencial, por isso a pressa para chegar ao ponto de ônibus. O estranho é que não fui considerada uma forasteira. Junto comigo, entrou uma gaúcha recém-chegada a Curitiba. Veio na véspera do início das atividades. Ela, sim, foi taxada de forasteira, vinda do sul. Não estamos já no sul?, pensei comigo mesma. O uso do termo sul como um ponto cardeal e não uma região com uma identidade externamente homogeneizada e caricata.
Faz sentido não ser mais a forasteira. Estou aqui há seis anos completos. Trabalho na área em que me formei numa universidade paranaense. Sou figurinha repetida de um clube de leitura. Tenho até uma linha de ônibus favorita. O que me preocupa é a situação do meu sotaque. É natural que o meu jeitinho de falar vá esmorecendo aos poucos. “Você” aparece no lugar de “tu”. Ao soletrar alguma palavra com a letra E, passo a dizer “ê” e não “é”. As vogais abertas vão desaparecendo. Principalmente no ambiente de trabalho. Involuntariamente, talvez queira passar despercebida.
Percebo que fui longe demais quando termino palavras com “o” realmente pronunciando o “o” (“ô”) e não “u”. “Advogadô” e não “advogadu”. A parte mais resistente do sotaque é o R que chamam de R que arranha a garganta ou que sai do fundo da garganta. O principal motivo para aqui me confundirem com alguém que veio do Rio de Janeiro.
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No caminho da minha casa até o lugar do serviço novo, passo perto dos últimos quatro lugares onde já trabalhei. Um motivo recorrente para relembrar o meu percurso na cidade. Como fui avançando algumas casas até chegar no agora. Eu me mudei para Curitiba especificamente para começar uma graduação. A minha relação com a cidade tem muito da minha relação com o trabalho. Pelo menos dá pra dizer também que vim para me entender como uma lésbica tardia. Foi aqui que tudo aconteceu. É por isso que permaneço.
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Logo na primeira semana, me deram uma chave da sala do trabalho. Ainda não usei. No chaveiro, guardo também as chaves da minha casa e a chave da casa de mamãe, lá em São Luís. Essa chave carrego faz tempo. Numa das minhas visitas, soube que a fechadura havia sido trocada. Não ganhei uma cópia. Continuei carregando a chave antiga como um talismã. E ria por ter comigo uma chave inútil, que me dava a falsa impressão de poder pegar um avião para casa a qualquer momento e conseguir entrar no apartamento. Da última vez, cansada de escutar essa conversa de chave desatualizada, minha mãe fez uma cópia da nova pra mim. Antes de aceitar, enfiei a chave do meu chaveiro na fechadura e funcionou. A chave estava certa o tempo todo.
mais doses
Episódio sobre Cassandra Rios, a escritora mais censurada do Brasil no podcast Dissidentes (link para o Spotify).
Um passeio com Natalia Ginzburg em Turim, na Itália.
Sob o signo de Aquiles: o livro Diorama (Carol Bensimon), as gays no Levítico e masculinidades.
Um relato sobre a leitura de O que é meu (José Henrique Bortoluci) e um avô caminhoneiro.
Inconsciências, um breve diário de sonhos.
Uma conversa entre Isabel Allende e Julia Louis-Dreyfus (em inglês). Vale a pena para saber o contexto da seguinte cena.
Uma menina de sete anos chega para a bibliotecária da escola e pergunta:
- Você conhece a escritora Isabel Allende?
- Sim, já li alguns livros dela.
- Pois ela está ficando com o meu avô.
Eu não moro tão longe, mas a chave da casa dos meus pais vive no meu chaveiro - que eu uso no meu pescoço por motivos de não esquecer, então acaba sendo bem um talismã mesmo. Muito obrigaqda por esses textos, eles são muito lindos.
Opa, meu e-mail avisou que tem doses de tiquira! Cheguei de viagem e vim correndo pra ler esse novo - e delicioso - texto (as usual) escrito por você. E qual não é a minha surpresa ao me deparar com um link pro meu textinho aqui? Fiquei emocionada! Que lindeza! Obrigada, Luisa, querida! ♥️