Metade lá, metade cá
#41 -- o vínculo com o Maranhão; discussão sobre a identidade nordestina; e a decisão de não voltar a morar em São Luís
crédito das imagens: fotos de Marcel Gautherot tiradas entre 1955 e 1967 em São Luís/ disponíveis no acervo de fotografia do IMS.
Não voltarei a morar em São Luís. Na edição passada, escrevi sobre sentir que fui arrancada da minha cidade. Arrancada pela raiz. No susto.
Mesmo sabendo que não voltarei como moradora, sinto uma conexão forte com meu local de nascimento. Não apenas sou do Maranhão, me sinto maranhense o tempo todo. Como se tivesse ido embora ontem. E não há catorze anos. É um vínculo que me impede de estabelecer uma ligação semelhante com qualquer outro local. Eu tenho o meu lugar no mundo. É São Luís. Só não é o lugar onde eu quero morar.
Não preciso me firmar em outra cidade. Não necessariamente. E não me incomoda pensar que um dia posso ir embora de Curitiba também. Mas estar com a cabeça em São Luís às vezes me afasta de onde estou no momento. Como se eu mesma estivesse me impedindo de me interessar pelo lugar do aqui e agora. Desse jeito, nunca vou ser uma curitibana honorária. A fantasia de ser uma exploradora da cidade nunca será concretizada.
Outro dia, estava fazendo exercícios para o tratamento de um probleminha na articulação da mandíbula, e a fisioterapeuta comentou sobre um hospital de referência do qual eu nunca tinha ouvido falar. Ela me perguntou bem assim: Você conhece Curitiba? Nunca falamos sobre a minha origem ou o tempo que estou morando aqui. Com um sotaque diferente, qualquer um sabe que não sou da cidade. Que sou de longe. Então eu hesitei.
São sete anos morando em Curitiba. Não tenho como sair dizendo por aí que acabei de chegar. Pensei nos hospitais de São Luís: São Domingos, UDI, Carlos Macieira, o Nina Rodrigues no caminho da casa de vovó. Pensei até naquele novo, perto da Lagoa da Jansen, sabe? Como é que posso lembrar de tudo isso tão automaticamente? O que dei conta de responder foi: Conheço Curitiba, mas não os hospitais. Nunca precisei, ainda bem.
Em alguns anos, vou estar mais tempo fora de São Luís do que já vivi na ilha. Parece uma cisma. Que falta desapegar, olhar pra frente, seguir a vida. Não se trata de querer ficar perto da família. Não é só isso. É o vínculo com o lugar, a ilha, o calor equatorial, as praias, a comida. É a vontade de pertencer a um lugar. De continuar pertencendo a algum lugar. Por muito tempo nutri a fantasia de que, não importasse quando, se eu descesse a pé a rua da casa de vovó alguém me reconheceria como neta de Dona Rita. Fui embora muito cedo, aos 17 anos. Deixei de viver muita coisa na minha cidade. Nunca virei a madrugada do dia 29 de junho no encontro de bois na capela de São Pedro.
Parti pensando que deixaria tudo para trás. Passado, cidade, sotaque. Por um tempo até me esforcei a suavizar o jeito de falar. Não puxava o esse, disfarçava as vogais abertas. Por isso, decidi gravar estes parágrafos com a minha voz. Para mostrar como fala uma maranhense de São Luís que já mora fora há bastante tempo. Aos olhos dos outros, esperava me tornar mais maranhense. E acabei me tornando foi nordestina. Coisa que nunca tinha me passado pela cabeça antes. A identidade nordestina que me foi imposta não existia. Nada de sangue de Maria Bonita pro meu lado.
Em meio a toda essa reflexão sobre cultura de pertencimento, o tema da identidade nordestina veio à tona. Primeiro com a peça ‘A invenção do Nordeste’, parte da programação do Festival de Teatro de Curitiba. O espetáculo é uma adaptação do livro de mesmo nome publicado em 1999 pelo pesquisador Durval Muniz. Com uma linguagem mais simples, e com bastante humor, a peça contextualiza o surgimento dos estereótipos do nordestino a partir do começo do século XX. Como é o nordestino? Como representar o nordestino? Será que existe um ser nordestino?
Por coincidência, o tema da invenção do nordeste também foi tema de um papo com o jornalista e escritor potiguar Octávio Santiago na Escola de Escrita Criativa. Lá fui eu. Foi interessante ouvir mais do projeto político estruturado para retirar de vez o poder já decadente das elites açucareiras e consolidar o comando do eixo sudeste. Mas e aí, se a gente sabe que a identidade nordestina foi inventada, o que fazer daqui pra frente?
Foi lá que me dei conta de que estou cansada dessa conversa de ser nordestina. Beleza, o Maranhão faz parte da região. Temos lá as nossas semelhanças com um ou outro estado. Mas não me sinto nordestina, me sinto maranhense.
Vejo por aí as tentativas de ressignificar a imagem que o nordestino tem na literatura, na televisão, no mercado de trabalho. Trocar o esteriótipo por uma imagem positiva, mostrando a riqueza cultural dos nove estados da região. O nordestino não tem que ter imagem nenhuma. É sufocante. O rótulo de nordestina é como uma prisão. Por mim, pode acabar com essa história agora. Pode até tirar a palavra do dicionário. O que eu sou é maranhense de São Luís. Carimbada. MADE IN SLZ.
Faço questão de manter o vínculo com o Maranhão. Não perder o sotaque. Voltar lá sempre que posso. Conhecer cada vez mais a minha própria cultura e a minha origem. Se dependesse só de mim, não sei se teria partido. É difícil, quase impossível, fazer o exercício de imaginar o que teria sido de mim sem o episódio que me fez querer ir embora.
Tentei voltar uma vez. A estadia em São Luís logo depois de me formar na faculdade, aos 22 anos, foi uma tentativa de me encaixar outra vez no espaço que eu ocupava antes de passar cinco anos fora. Era cedo demais. Mas compreendo a escolha que fiz naquele momento. Veja só, tinha acabado de passar um mês viajando em municípios e povoados nos arredores dos Lençóis Maranhenses. Me sentia ainda mais pertencente ao meu estado.
Poderia ser um retorno triunfal, a chance de viver na minha cidade como adulta e não mais a adolescente que só pensava em ir embora. Não deu certo. O motivo que me fez sair de São Luís foi o mesmo que hoje me dá a certeza de que não quero fazer a vida lá. Posso visitar, passar o tempo que for, mas não fixo residência. Estabelecer uma vida seria voltar a ser a adolescente que teve fotos íntimas divulgadas sem o seu consentimento quando o Orkut era a rede social da vez. Numa época em que a conduta sequer era considerada um crime.
Eu volto, e fico o suficiente para não reencontrar esse passado. Antes que esbarre com alguém na rua que me chame pelo apelido que usavam comigo na época. Não um apelido que fizesse referência ao acontecimento. Um apelido qualquer, derivado do meu próprio nome. E que ficou marcado como registro dessa época. Quem quer que me chame desse jeito parece que está passando um recado: eu me lembro do que aconteceu, eu vi.
*
A minha relação com o lugar onde eu nasci inevitavelmente passa pelo que aconteceu comigo. Sair de lá era o único jeito de começar do zero. E cá estou eu, escrevendo sobre o assunto na mesma internet que possibilitou a invasão da minha privacidade. Mas escrevo nos meus termos, com a cabeça fria, do jeito que eu quero. Afinal, não teria como pensar em ter um lugar do mundo sem considerar que eu larguei o meu lugar depois de ter sofrido uma violência. Estou preparada para começar a falar sobre isso.
Sobre pertencer, o que me resta é balancear dentro de mim a certeza de que não quero voltar de vez e que, ao mesmo tempo, me sinto parte da minha cidade. Posso dizer que São Luís é o meu lugar. Não importa onde vou morar daqui pra frente. A certeza é que estarei pensando na minha origem, nas marcas que carrego por ter crescido lá no Maranhão. Estarei metade lá, metade cá.
- no começo da newsletter, cheguei a escrever um pouco sobre a violência que sofri, mas nada que tenha ficado disponível depois fora do e-mail dos poucos que já me acompanham naquela época. essa é a primeira vez.
- caso alguém que me lê tenha passado por algo parecido e queira falar sobre o assunto, estou procurando gente para conversar que realmente entenda. me dei conta de que nunca falei com alguém com uma experiência do tipo. para entrar em contato comigo, é possível responder a esse e-mail como uma mensagem normal ou enviar direto para dosesdetiquira@gmail.com.
Luísa. Abraço.
Sinto muito que você tenha passado por isso, Luisa. Sobre a identidade nordestina, penso que você está certíssima. Eu sou mineira e ninguém me chama de sudestina. São 9 Estados, cada um com sua identidade. Essa sensação de olhar pra trás e reconhecer de onde você veio é reconfortante, mas também é olhar pra você agora e ver o quão longe você conseguiu ir pra se libertar daquilo que sufocava. Sinta-se abraçada 🧡