O banco curitibano
#36 -- análise do sistema de transporte da cidade; prós e contras das estações-tubo; e uma conexão entre Curitiba e Nápoles
introdução
As últimas notas de real que passaram pelas minhas mãos foram todas conquistadas num tipo de transação cada vez mais frequente pelas ruas de Curitiba. Agora que poucas linhas de ônibus aceitam pagamento em dinheiro, cidadãos são obrigados a iniciar uma conversa caso não estejam com o cartão transporte abastecido.
Chego no ponto ainda deserto, aguardo o bonde que vai passar em algum momento entre os próximos dez ou quarenta minutos. Vem chegando outra passageira. Trocamos olhares rápidos para evitar um cumprimento. Cada uma na sua até que o ônibus finalmente desponta na esquina. A outra passageira chama minha atenção, depois de garantir que estou segurando o cartão transporte, olha bem no fundo dos meus olhos e pergunta: Pode passar o cartão pra mim? Te pago a passagem em dinheiro, diz, entregando uma nota de cinco e uma de dois.
(Foi a única vez que cheguei a ter lucro com a transação. Na maioria das vezes, é oferecido o valor exato da passagem: cinco e cinquenta.)
A insistência em retirar os cobradores das linhas de ônibus, proibindo os passageiros de pagar a passagem com dinheiro, antes de ser uma manobra para redução da folha de pagamento, bem que poderia ser uma forma de incentivar a socialização dos curitibanos. Um artifício criado por um servidor da secretaria de transporte com o objetivo de combater o individualismo nas grandes cidades. Mas não é bem assim.
Pra começo de conversa, Curitiba tem as famosas estações-tubo de ônibus, cada uma com seu cobrador. Nos tubos, passam as principais linhas da cidade. A transação do passa-o-cartão-pra-mim é exclusiva para as linhas de bairro, que param em pontos de ônibus comuns, nas calçadas. Todos contendo um teto, uma propaganda de show internacional e um mapa incompreensível da rede de transporte da cidade.
O que me intriga é o tipo de gente que sai por aí sem saldo no cartão transporte. Esqueceu de fazer a recarga? Saiu de casa com pressa? Já tinha sacado o dinheiro do banco e agora tinha que gastar as notas? Perdeu o cartão transporte? Foi assaltado?
Quando me mudei para Curitiba, apenas uma das três linhas de bairro que paravam na minha faculdade aceitavam pagamento em dinheiro. Tinha pavor de ficar sem crédito e não ter como ir pra aula. Ou de confundir as linhas e entrar num ônibus que não aceitasse dinheiro.
Dá pra recarregar o cartão transporte por aplicativo de celular, pelo site da empresa que administra o serviço, em ruas da cidadania e em bancas de jornal do centro da cidade que foram reformadas para os mais diversos usos. Loja de planta, banca de doces, mini-conveniência para pedestres. O tipo de lugar que, se alguém entra perguntando por uma revista, recebe a seguinte resposta: “Graças a Deus não trabalho mais com jornal”. Já aconteceu comigo.
Fora a opção clássica de usar o cartão transporte, com a bagatela de 0,12 centavos adicionados ao valor da passagem, também dá para pagar a tarifa com cartão. O validador vai tentar passar primeiro no débito e, se não der certo, vai tentar o crédito. Inteligente a coisa. O sonho da Mia Colucci enfim realizado (eu nunca vi Rebelde). Um dia esqueci o cartão transporte em casa e usei o débito pela primeira vez. Pensei que me sentiria mais curitibana. E me senti foi besta de ter saído sem meu cartão de ônibus. Erro de principiante.
explicando o sistema
Quando chego numa cidade nova, é natural que tente me localizar no sistema de transporte decorando o número das linhas de ônibus. Não os nomes. Os bairros da cidade ainda não significam nada pra mim. Depois de um tempo é que começam a fazer sentido. Para complicar a vida do recém-chegado, Curitiba tem um esquema de cores e categorias para as linhas de transporte.
Vermelhos são os ônibus biarticulados, que só param nas estações-tubo. Os de cor cinza também só param nos tubos, mas são menores e chamados de ‘ligeirinhos’. Os alimentadores, na cor laranja, conectam bairros e terminais (desta categoria surgiu o meu queridinho 216-CABRAL/PORTÃO). Amarelos são os convencionais, com bons trajetos que levam ao centro da cidade e uma periodicidade inexistente.
O convencional em Curitiba é ficar mofando na parada, sem saber quando um micro-ônibus vai passar pra te buscar. A linha 464-ALCIDES MUNHOZ/JARDIM BOTÂNICO é uma que até já vi passar na rua, mas nunca numa rua com ponto de ônibus. Vai saber. A verdade é que não existe ônibus mais frequente que a Linha Turismo (Línea Turismo - Tourism Line), a tal jardineira, que vai passar no mínimo duas vezes enquanto o usuário de transporte público espera qualquer outra linha normal que não custe cinquenta reais.
estações-tubo
Prós: protegem os passageiros da chuva; não precisa fazer sinal para subir no ônibus, nem ‘puxar a cordinha’ para avisar que vai descer no próximo ponto.
Contras: o ônibus não espera se você estiver passando na catraca; uma vez vi uma moça ficar muito enjoada dentro de um ‘ligeirinho’ em pleno horário de pico e ela foi obrigada a vomitar no cantinho da porta porque o ônibus só poderia parar no próximo tubo. Um bom momento para estar parada num engarrafamento.
& um dilema: Estações-tubo não possuem banheiros para uso dos cobradores que ali trabalham. São utilizados os banheiros de locais nos arredores dos tubos. Situação longe de ser a ideal para os funcionários, vale ressaltar.
Então é possível que você chegue num tubo sem cobrador. Um empecilho se você for pagar em dinheiro. Caso o tubo do sentido contrário esteja localizado exatamente do outro lado da canaleta de ônibus, o cobrador do outro tubo pode cobrir o colega. Caso não tenha ninguém por perto, é de pleno conhecimento da população que o passageiro pode entrar no tubo sem pagar. Só passar pela portinha ao lado da catraca. Simples assim.
Uma vez estava indo ao trabalho e não havia nem sombra de cobrador. Nem no meu tubo, nem no tubo do outro lado da rua. Não tinha saldo no cartão transporte. Ia pagar no dinheiro. Veio um ônibus. Travei. O ônibus foi embora. E eu ali fora. Voltou o cobrador, paguei, logo passou outro ônibus, segui em direção ao escritório da firma.
Sei que se o cobrador tivesse abandonado o posto de vez e nunca mais chegasse outro cobrador para substituí-lo no turno seguinte, na estação-tubo-fantasma, ainda estaria lá, travada, formando uma fila sem sentido com outros passageiros travados. Vendo os ônibus passar em intervalos regulares, seriam criadas regras para a sociedade independente ali formada. A comunicação oficial seria pelo método do telefone sem fio. A primeira mensagem a ser transmitida: Será que o cobrador foi sequestrado?
rapidinhas
Enquanto escrevia sobre ônibus, a passagem aumentou de R$ 5,50 para R$ 6. Curitiba, a cidade que homenageia as mulheres no dia 8 de março com a instalação de cílios em semáforos (dizem que foi daí que surgiu a moda de extensão de cílios), que adesiva ônibus com máscaras brancas (supondo que as bocas dos ônibus são abaixo dos vidros dianteiros) para incentivar a prevenção da Covid-19 e que tem uma das tarifas mais caras do país.
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Precisava tirar uma foto 3x4. Não quis tirar em casa e mandar imprimir por dois motivos. 1) Não tenho parede branca em casa. 2) Melhor terceirizar o serviço de bater um retrato que eu sei que não vou aprovar.
O único local que oferecia o serviço fora do horário comercial ficava no shopping mais caro da cidade. Lá fui eu de ônibus. Andava pelos corredores espaçados, no centro comercial mais vazio da cidade, abismada, querendo sair o mais rápido possível.
Conseguir encontrar o local da foto 3x4 já foi uma vitória. Ficava na alameda de serviços. A foto não ficou boa, como era de se esperar. Na volta, a TV do ônibus mostrou a previsão da semana para o meu signo. Foi um sinal. Bons tempos para mudanças, dizia o horóscopo. Um bom final praquele dia.
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Outro dia estava saindo de um exame médico e observei o trânsito parado com a passagem do trem de carga no Alto da XV - uma ferrovia corta esse e outros bairros da cidade. Teria voltado para casa rapidinho se desse pra pegar carona no trem, mesmo com a velocidade reduzida por estarmos em região residencial. Deslizando devagarinho, daria pra embarcar e descer sem que o trem parasse totalmente. Seria uma vantagem para a compensar a buzina que ecoa nas noites curitibanas.
enfim, o banco curitibano
Quanto mais lugar pra sentar no ônibus, melhor, né?
Não em Curitiba. Aqui conheci os modelos de ônibus que privilegiam os assentos individuais. Uma fila de cadeiras solitárias, com vista para a janela, por mim batizadas como ‘o banco curitibano’. Não importa se o ônibus é biarticulado, apenas articulado, um ônibus simples ou um micro-ônibus. Todos eles possuem mais bancos curitibanos que os tipos já vistos e experimentados em outras cidades.
De primeira, impliquei com eles. Um absurdo, sabe. Mais uma mostra de como o pessoal daqui é ranzinza. Preferem ter menos lugar para sentar na volta do trabalho do que dividir o espaço pessoal com um completo desconhecido. Na minha terra, a etiqueta do transporte público exigia que a pessoa sentada ao lado do corredor se oferecesse para segurar a mochila da pessoa em pé mais perto. E aqui o povo não pode nem sentar um ao lado do outro. Corre para chegar primeiro na fileira dos assentos únicos. Que coisa.
Com o tempo, fui me afeiçoando ao banco curitibano. Para mulheres, é mais seguro sentar sozinha do que ficar encurralada na janela quando quem chega ao seu lado é um homem. Nem precisa pedir para ninguém levantar antes de descer do ônibus. Quem não gosta de um pouco de espaço? Um camarote individual. Uma conquista a ser celebrada internamente. Ufa, o ônibus estava lotado mas pelo menos consegui vir sentada num banco curitibano, aproveitando a vista. Só fica melhor se a televisão do ônibus mostrar o horóscopo do seu signo.
Estou acompanhando a segunda temporada da série A amiga genial, baseada na tetralogia napolitana da Elena Ferrante. Logo no primeiro episódio, vejo Lenu entrando num ônibus em direção ao centro da cidade. É naquela fase em que ela desiste de continuar a escola, então estava apenas indo passear. Não é que ela me senta num banco curitibano? Quem diria, Nápoles.
saideira
*** Paula Gomes (da newsletter Refrescos) lançou uma novela especulativa sobre São Henrique, uma cidade que não deixa seus habitantes ficarem fora de lá por mais de doze horas. O título já antecipa o caminho da história: um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu (o livro está disponível no kindle unlimited!). Estou lendo e adorando, principalmente pelo tom de humor que já conhecia de outro livro da Paula, ninguém morre sem ser anunciado.
Sou carioca e moro em Curitiba há uns 5 anos, mais ou menos. Ainda tentando me acostumar com o povo daqui e com esses ônibus que só passam com horários enormes entre um e outro. No Rio você fica no máximo uns 10 minutos no ponto... Também não entendo porque não tem banca de jornal nessa cidade. É uma dificuldade achar uma que venda jornal ou revista. Muito estranho. kkkk
Aiiiiii que edição mais Trem das Onze! ♡ ameeei suas aventuras oelas onibus de curitiba♡♡