Curitiba, 19 de dezembro de 2023.
Não tenho uma relação muito próxima com a música. Pra piorar, estou numa fase intensa de ouvir audiolivros. Uma fase que já dura anos. Não sobra muito tempo pra escutar um álbum inteiro ou conhecer novos artistas. Não é algo que passe pela minha cabeça no dia a dia. Quando posso, gosto de privilegiar o silêncio. No trabalho, não consigo me desligar do ambiente externo com fone de ouvido porque sou chamada mais vezes do que gostaria.
Comecei a pensar no assunto quando li teus escritos sobre os álbuns mais escutados em cada mês e, principalmente, a partir de textos escritos entre junho e dezembro de 2022 que relacionam as músicas com o teu estado de espírito e, ainda, apresentam muito do que tu sabe sobre histórias de bandas e estilos musicais. Gosto de como tu localiza o tempo e o espaço desses momentos de vida.
“Eu ficava na porta da sala, aproveitando aquele frescor de casa limpa no fim da tarde, ouvindo o barulho do rastelo do vizinho marcando a terra ao amontoar as folhas secas assim como as músicas que ele colocava no som do carro. Lembro de tocar Modern Talking, Dire Straits, Ace Frehley (aliás, de um CD que eu gravei e dei a ele e sua esposa) e, claro, ABBA.”
(Eles irão roubar seu coração e você terá que pagar o preço)
“A primeira vez que eu ouvi Wild Seed (1995) do Morten Harket, estava sozinha em Dourados no apartamento super aconchegante de uma amiga. A cólica menstrual estava me comendo viva e além do stress causado pela dor em si, tem toda a loucura que me acomete nessas ocasiões.”
(Lembrete pessoal: não deixe a janela aberta)
“E nesse papo todo de morte é que eu quero puxar o gancho para falar sobre a Vanusa, uma grande cantora brasileira que eu só conheci devido às notícias sobre sua morte. Foi durante a pandemia, em 2020, que mamãe me mandou o link de uma notícia contando que Vanusa morreu esquecida em uma espécie de asilo, aos 73 anos.”
(Caminhemos, talvez nos vejamos)
Que disparate chegar a um hora dessas pra responder o que foi escrito no fim do ano passado. Sinto que estou resgatando uma conversa esquecida entre as mensagens arquivadas. Coisa que faço com frequência. Fica aqui essa pequena confissão.
A minha vida musical é uma sucessão de flertes. Saindo da infância, quando comecei a formar opinião própria, flertei com o gótico depois de ouvir muito Evanescence nas alturas, incomodando os vizinhos. Depois foi a vez do hard rock, copiando na agenda as letras das músicas de Skid Row. Lá em São Luís havia uma cena de bandas de glam que já nem lembro se faziam covers ou se tinham um repertório próprio.
E aí eu me mudei de cidade e de estado. Na faculdade eu ouvia o que tocava nas festas. Indie rock e pop nas baladinhas apertadas, sendo o terror dos djs e suplicando para tocarem o hit Lisztomania - Phoenix para poder dançar com minha melhor amiga. Ou ouvia música brasileira (no caso, Novos Baianos e duas músicas de Caetano no repeat) num lugar com varanda em frente à Lagoa da Conceição (pois estava em Florianópolis nesses anos).
Depois eu cismei com música chilena, abrindo caminhos para drogas mais pesadas (qualquer pessoa que cante em espanhol) e, ao mesmo tempo, comecei a sentir saudade de casa, apelando para o controverso Fagner. Que, apesar de ser cearense e não maranhense como Zeca Baleiro e Alcione, era o que mamãe mais escutava e ainda escuta em casa. Fim da recapitulação.
Pra tu ter uma ideia, neste ano fui apenas em um show. Cheguei a cogitar comprar ingresso para ver o Evanescence aqui em Curitiba. Seria tão fácil ir numa apresentação na cidade onde estou morando. Algo fora de cogitação para a Luisa de 14 anos que morava em São Luís. Eu escutei aquelas músicas de novo e fui tomada por uma tristeza tão grande, sem qualquer pingo de nostalgia, que não fazia o menor sentido gastar dinheiro para ficar triste numa multidão de desconhecidos. Eu escutava My immortal com a cabeça encostada na janela do ônibus a caminho do trabalho e pensava que não queria voltar a ter os sentimentos de uma adolescente em crise.
Então veio o show da Pitty, a primeira vez que eu fui num show na Ópera de Arame, ambiente que dá um charme extra para qualquer apresentação. Pensei que seria um show ok, sem grandes expectativas, seria bom ouvir novamente os sucessos do Admirável mundo novo. Mais de dez anos antes, fui a um show da Pitty em Maceió/Alagoas, onde minhas primas estavam morando, e me lembro mais da impressão de independência por ir num lugar sem a supervisão de adultos do que do show em si.
Naquela noite de junho, acabei me divertindo tanto que a minha namorada ficou surpresa com aquela pessoa ao lado dela que dançava tanto da última fileira da arquibancada (quase ficamos sem ingressos, compramos um dos últimos). Com direito a crise de choro, daqueles choro dos bons, na música Na sua estante. No choro, não havia nada do que eu disse ali em cima sobre não querer sentir os mesmos sentimentos do passado, como se o tempo não tivesse passado.
Isso de não querer ser assombrada pelo que ficou pra trás me lembrou o que tu escreveu em julho de 2022, o lembrete de não deixar a janela aberta.
Sabe quando você esquece a janela do seu quarto aberta e sai de casa pensando “está um sol de rachar, não tem problema” e do nada o tempo muda, chove, venta muito e molha a sua cama? Quando você chega em casa desesperado, limpa e seca o quarto e fica tudo bem, problema resolvido. O transtorno foi tão grande que você irá se lembrar de fechar a janela da próxima vez, ufa, mas aí tem o colchão molhado que precisa de uns dias para secar completamente e você é obrigada a dormir nele porque não tem outro.
A sensação de dormir num colchão úmido ficou martelando na minha cabeça por uns dias. Rolou uma identificação por aqui. Não de agora. Estou num bom momento. E, como já passou bastante tempo do teu texto, espero que tu também esteja.
O que me pegou foi essa outro trecho sobre a a melancolia de “pensar em coisas que foram e não são mais; nas coisas que sabemos que não tem como mudar, mas ainda assim a gente deseja de alguma forma que aquilo pudesse ser recuperado”.
No show da Pitty, ouvi Na sua estante pensando não no que já sofri e, de certa forma, já passou, mas em como esse eu do passado que sofria chegou ao eu daquele momento, livre e carregando os impactos do que já aconteceu. Tem coisa que não vai embora nunca, começa a fazer parte da gente. O colchão seca, mas a gente sabe que ele já esteve úmido.
Antes de terminar essa carta, quero deixar uma recomendação de leitura. Passei pela minha lista de lidos em 2023 tentando pinçar ao menos um livro para ouvir. Não os audiolivros. Como tu mesma disse, livros em que a música é um dos personagens principais, movimentando os acontecimentos e marcando momentos importantes.
E me lembrei de Cinza na boca, da mexicana Brenda Navarro (que escutei no formato audiolivro, então pode ser um livro para ouvir nos dois sentidos). O livro já começa com a epígrafe da música Sympathy (Vampire Weekend): “Diego Garcia // Surrounded by the waves // Lonely in the ocean // But in every other way // It was full of love // And the warmest fellow-feeling.”
A autora interpreta a música de uma forma bem livre pra fazer esse livro sobre ir embora do lugar onde você nasceu, contradições de classe e luto. Diego Garcia, inclusive, vira nome de um dos personagens centrais da história e tem como banda preferida o Vampire Weekend. Alguém nesse livro pode ou não de fato colocar cinzas de um parente morto na boca.
obs.: sei que tu gosta de Raul Seixas. por acaso teria alguma explicação para em 1991 (ano em que nasci!) um selo comemorativo com a imagens dele custar pelo menos sete vezes mais do que um selo com a cara do Cazuza? fiquei curiosa.
Essa é uma carta para
, da newsletter resenhas que ninguém pediu.Participei novamente da troca de cartas secretas entre algumas pessoas que escrevem newslettes. Escrevi esse texto em resposta ao tão mencionado “Lembrete Pessoal: não deixe a janela aberta”. Queria também recomendar um texto sobre o compositor da música Pavão Misterioso. E vale mencionar que desde outubro Victória abriu um clube de leitura voltado para a discussão de livros sobre música.
mais doses
Na boca do fogão: acarajé com cocada de forno -- dançando ilú e ijexá na cozinha (rafa medeiros).
em pandarecos -- sobre o burnout de personalidade e outras reflexões absolutamente autocentradas (isadora attab).
Amigo de escritor (aline valek) -- essa discussão aqui ainda não terminou de assentar na minha cabeça porque eu sequer sou assumida como pessoa que escreve em todos os meus círculos (quem sabe em breve).
Vic é maravilhosa. E esse texto muito lindo.
Que texto maravilhoso Luisa. Fui a zero shows nos últimos 5 anos e te ler me fez visitar muitas memórias musicais e outras coincidências do passado. Fiquei feliz de lembrar que fui a um show do vampire weekend e que eu dancei tanto que fiz um buraco no chão ❤️ quero um dia mandar uma carta pra ti, topa? Adoro lhe ler. Ótimo fim de ano pra tu. ps: amei as doses fiquei toda besta e feliz aqui rssrs e já tive um falecido blog onde escrevia só sobre resenhas de álbuns. Bateu saudad, mas antes vou ouvir o audiolivros que você indicou. Xero