Alcântara/MA e ruínas contemporâneas
#28 -- atravessar a Baía de São Marcos para ver destroços, pensar a decadência e encontrar cartões postais de vinte anos atrás
Da praia de Itatinga, na cidade de Alcântara, vejo a silhueta de prédios da orla de São Luís por trás de uma neblina estranha à região. Estar do outro lado da Baía de São Marcos dá pra a impressão errada de que Alcântara fica numa ilha e São Luís, no continente.
O trajeto mais rápido entre as cidades é feito de lancha, a partir do Cais da Praia Grande, um pequeno embarcadouro localizado perto do centro histórico de São Luís. Chego em cima da hora e pego um dos piores lugares do barco, no porão. Sem nenhuma janelinha pra observar o caminho. Fico enjoada.
Chegando em Alcântara, a subida da ladeira do Jacaré é intuitiva. Ainda no frescor das primeiras horas da manhã, é fácil chegar à praça da Matriz, onde algumas pessoasm recolhem o lixo espalhado no gramado. O vento forte indica que o lixo foi espalhado pelo vento durante a madrugada. Em poucos minutos, o gramado está intacto, preparado para a leva de turistas do dia.
O que visitar em Alcântara?
Ruínas e mais ruínas. Ruína de igreja, ruína de casarão, ruína de fonte, ruína de rua. Destroços de ruínas. Se o turismo de uma cidade está baseado em sua derrocada, quanto mais arruinada melhor fica?
A história de Alcântara é vendida como a cidade que se preparava para a visita do imperador Dom Pedro II que nunca nem chegou perto dali, como um lugar que atingiu seu auge no século 18 e, dali pra frente, foi só ladeira abaixo. A visita guiada no museu histórico me deixa pensando que os barões da cidade não sabiam mais acumular riqueza depois do fim da escravidão. As datas coincidem.
Na tese Redes e ruínas, sobre o apogeu e declínio de Alcântara, Grete Soares Pflueger fala do conceito de cidade como escrita. Citando Raquel Rolnik, se construir cidades é uma forma de escrita, com a arquitetura urbana cumprindo o papel de fixar a memória, as ruínas seriam textos abandonados, fragmentos da escrita da cidade.
As ruínas são como as peças de quebra-cabeça que necessitam de complemento para a compreensão ou podem ser vistas isoladas em sua resistência, permanência e valor intrínseco ou no contexto urbano como fragmentos do passado e da memória física dos monumentos. (pág. 76)
Um exemplo dessas peças de quebra-cabeça é a Rua da Amargura. Mil e uma anedotas podem ser contadas pra explicar o nome da rua. Qualquer uma vai ser mais interessante que a pura e simples decadência de uma elite aristocrata que, num contexto de crise econômica, largou de mão uma cidade em declínio e se instalou de vez na capital da província, São Luís.
Antes, a Rua Bela Vista era a área nobre de Alcântara, com os palacetes das famílias mais ricas da cidade. Hoje, a Rua da Amargura é tomada pelo matagal. Difícil imaginar como eram os casarões e palacetes da época a partir de algumas paredes de pedra. Você entra num cômodo de um desses casarões, as quatro paredes ainda estão de pé e é isso. Você se sente num cômodo de muros de pedra, a céu aberto, o calor começando a incomodar.
Lendo sobre a cidade, um tempo depois da viagem, chego ao boato de que um tal médico de São Paulo, em visita à Alcântara, teria comparado as ruínas dali com os destroços de Pompeia, destruída com a erupção de um vulcão. Ué, mas Alcântara não é cidade de desastres naturais. Vou atrás dessa história.
Os médicos sanitaristas Victor Godinho e Adolfo Lindenberg, trabalhando para o Serviço Sanitário de São Paulo, foram ao Maranhão em 1904 dar um jeito no surto de peste bubônica que assolava São Luís.
As impressões da viagem foram publicadas no livro Norte do Brasil – Através do Amazonas, do Pará e do Maranhão, assinado em conjunto pelos médicos. A visita de Alcântara foi apenas um pretexto para dar um passeio marítimo na baía de São Marcos (“não que a cidade velha e arruinada mereça ser visitada”):
Foi na Rua da Amargura que veio a comparação: “A rua inteira é uma Pompeia!”.
O espetáculo que oferecem todos esses antigos sobrados é sempre o mesmo. Paredes de pedra, nuas, isoladas, esqueléticas, mais ou menos cobertas de verde; um ou outro gradil enferrujado; belíssimas colunas de granito português, e blocos de mármore espalhados por toda a parte, lembrando na sua alvura e na sua tristeza as ossadas de um cemitério. (págs.169-170)
Depois que os autores dão uma acalmada na decepção (tô com uma leve impressão de que esses dois realmente não gostaram de Alcântara), chegam à conclusão de que, na falta de um cataclisma para justificar tamanha ruína, apenas o declínio comercial foi motivo para o abandono. Sem graça assim mesmo.
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A Casa de Cultura Aeroespacial fica ainda na região central , um pouco mais distante das ruínas célebres da cidade. Um jovem fardado conta a história da Base de Alcântara. Todo um encantamento pelo desenvolvimento científico. O interesse do grupo de turistas é no momento em que a narrativa vai chegar no acidente de 2003 que vitimou 21 pessoas durante uma explosão. O rapaz nem deve se lembrar do acidente, se é que já era nascido.
Na leitura da tese, quando Grete Soares Pflueger fala de ruínas contemporâneas no contexto do acidente com a plataforma de lançamentos de foguetes, percebo que faria muito sentido para Alcântara tratar o acidente como mais uma ruína simbólica do lugar. A construção da base, durante a ditadura militar brasileira, afetou diretamente a terra dos remanescentes de quilombos da região.
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Na frente da Casa do Divino, local com um museu sobre a festa do Divino Espírito Santo, fica uma loja de artesanato. Não vejo muitas pela cidade. Talvez seja a loja de artesanato. O que me entrar é um quadro com cartões postais que consigo ver da calçada. Espero acabar o atendimento de duas clientes agoniadas com o horário pra não perderem o ferry-boat. Pergunto dos postais, e a vendedora tira uma caixa de arquivo do fundo da prateleira.
Os postais estão amarelados, com algumas manchas de guardado. Vejo fotos de detalhes dos altares das igrejas, poucas fachadas de casarões, uma ou outra foto do centro de São Luís perdida no meio, outra de uma estação de passageiros na Estrada de Ferro Carajás. Um dos postais se destaca por mostrar uma fotografia de 1982 com uma criança pelada entrando na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Isso lá é foto de colocar em cartão postal, Barnabás?, a vendedora perguntou ao fotógrafo há alguns bons anos.
Fico sabendo que o fotógrafo já faleceu. Os postais são do começo dos anos 2000. Percebo que ninguém mais está produzindo novas tiragens. São achados, custando R$ 3,50 a unidade. As fotos são de Barnabás Bosshart, suíço que viveu mais de quarenta anos lá em Alcântara e publicou em 1989 o livro Alcântara: uma Cidade no Brasil entre Memória Colonial e Sonhos Intergalácticos.
No meu último dia em Alcântara, espero (na sombra, o calor é grande) a agência dos correios abrir depois do almoço para enviar o postal da criança pelada para a minha namorada. Três semanas depois, chego em Curitiba antes do cartão postal vir parar na nossa caixa de correio.
outras doses
O que cabe num território. Babi Carneiro escreve sobre uma estadia no Quilombo Nhungara, no Estado de São Paulo.
#207 Queria ser grande, mas desisti. A nóia de querer ter independência.
The Tallest Tree #12. Carol Bensimon respondendo perguntas sobre Diorama, seu livro mais recente. Agora ela tem uma newsletter no Substack que chama Nevoeiro.