A marcha da vacina
#9 -- a fila ao lado é sempre mais rápida; mulher anônima à espera da primeira dose; uma observação sobre pugs
Entrar numa fila sem saber se você está no lugar certo é sempre um risco. Não tem essa de recuperar o tempo perdido na espera. No sábado de manhã, eu me aproximava da unidade de saúde na praça Ouvidor Pardinho e não tive dúvidas quando vi aquela fileira de gente dando volta no quarteirão. Só podia ser a fila da primeira dose. O ritmo estava acelerado, a espera parecia promissora. E, ainda bem, estava no lugar certo.
Aproveitando que ainda estamos sob efeito de Tóquio 2020, bem que o estirão para tomar a vacina poderia ser uma nova categoria para a competição de atletismo. Algo entre o andar na ponta dos pés da ginástica rítmica e a própria marcha olímpica.
Que tipo de atleta você seria? A pessoa sem máscara que quer tomar o imunizante do vírus transmitido pelo ar? Ou a pessoa que troca de máscara com a mãe durante a espera? A que tira fotos a cada curva da fila? A que está usando PFF2 e faceshield? O ciclista que segura a bicicleta durante toda a espera? A sapatão acompanhada da namorada? (As duas teriam nascido no mesmo ano? Esperaram para tomar a vacina juntas? Se conheceram ali mesmo na fila? Fiquei com muitas questões não respondidas.) O cara de meia-idade que depois de uma hora finalmente entende que não teria aplicação da segunda dose naquele dia e sai reclamando? A pessoa que leva o cachorro junto para o passeio mais entediante da vida dele? Ou o próprio cachorro?
Na marcha para a vacina, estive acompanhada de um livro sobre o coronavírus. Difícil resistir a uma leitura de não ficção que, com toda a certeza, vai me fazer sofrer em algum momento. Pra variar um pouco, também precisava economizar a bateria do celular e, assim, poder mostrar o comprovante de residência caso fosse necessário na triagem -- foi necessário.
Diários de Wuhan é um compilado de postagens da escritora chinesa Fang Fang durante o confinamento estrito nessa cidade que nunca tinha nem ouvido falar nos anos a.C. -- antes do coronavírus. Hoje a minha cabeça já completa a frase automaticamente: Wuhan, o epicentro da pandemia.
O ponto de vista dos textos é de alguém que realmente não sai de casa. Pelo menos até agora, na parte da leitura onde parei, em fevereiro de 2020. Mesmo com a escritora trancafiada dentro de casa, tendo contato com o mundo exterior só pela internet, as entradas do diário mostram uma intimidade surpreendente com a cidade de mais de nove milhões de pessoas. Não com um bairro, não com um distrito. Com a cidade inteira.
“Estou sempre dizendo que todas as minhas memórias estão enraizadas nessa cidade, cada lembrança plantada pelas pessoas que conheci desde a infância até hoje. Sou uma nativa de Wuhan de cabo a rabo.” (10/02/2020)
A percepção da fragilidade do meu vínculo com Curitiba é recente e, por isso, me sentia ainda mais deslocada na fila. Era a minha primeira vez naquela praça, me sentia perdida mesmo numa região central da cidade. Tanta gente nascida até 1991 reunida no mesmo lugar, e eu anônima. Será que Fang Fang já se vacinou? Imagino que sim. E que ela deve ter encontrado meio mundo tanto na primeira quando na segunda dose.
Foi aí que a marcha se aproximou das tendas de vacinação e me dei conta de que, na verdade, a fila apenas passava ao lado, seguindo para dar voltas e mais voltas ao redor da praça. Uma enfermeira recomendava que, quem pudesse, fosse para uma outra unidade de saúde, com menos fila.
Uma coisa é trocar de caixa no supermercado e ficar esperando enquanto a pessoa que só tinha cinco itens na cesta paga a conta de luz e coloca recarga no celular. Para depois o sistema travar durante quinze minutos por nenhum motivo. Outra é pegar ônibus, talvez chamar um carro de aplicativo, ir a outro lugar que você nem conhece e, chegando lá, descobrir que agora o tempo de espera menor é na unidade de saúde onde você estava.
Ainda assim, fiquei em dúvida, encarando a tela do celular com o valor estimado da corrida e aumentando o risco de ficar sem bateria (ai, o comprovante de residência!), quando olho ao redor e dou de cara com um casal de conhecidos. O mesmo casal que encontrei nas eleições municipais do ano passado em que trabalhei como mesária. Ufa, finalmente tenho acompanhantes oficiais para eventos históricos em Curitiba.
Ver esses conhecidos enquanto eu me sentia tão estrangeira com certeza era um sinal para continuar naquela fila. Abandonei a ideia de chamar um carro e voltei ao livro, interrompendo a leitura de tempos em tempos apenas para observar a comunidade no entorno. Eram muitos os cachorros passeando na praça e, definitivamente, a maior parte da população canina era de pugs -- é urgente o desenvolvimento de um estudo estabelecendo o paralelo entre a adesão à vacina do novo coronavírus e a predileção por cães que se esquadram na categoria pug.
O cara na minha frente, atleta adepto da selfie a cada 10 metros percorridos na pista, recebeu a visita de uma amiga vacinada. Os dois não calavam a boca, e ficou mais difícil me concentrar na leitura. Já nos aproximávamos do momento de assinar o termo de consentimento da vacina e anotar num papel os nossos dados previamente cadastrados no aplicativo da prefeitura. Uma pitada de burocracia pra ajudar a passar o tempo. O burburinho da conversa desinteressante se juntava à empolgação de estar cada vez mais perto dela, A Primeira Dose Da Vacina.
De repente, reparei num marmanjo deixando o skate pra marcar o lugar na fila enquanto ele ia falar com um amigo que dirigia uma 4x4. Depois de uma hora de marcha, ele largou tudo e entrou no carro. Simples assim. É claro que ele voltou pelo skate. Mas pra onde ele foi? O que diabos ele foi fazer? Não consegui elaborar qualquer teoria porque me atentei ao abacate que caiu no chão enquanto o rapaz entrava no carro pela porta de trás. Um abacate rolando na rua, ao lado da fila.
Ficar pensando em abacate alheio é algo que só o tédio de uma longa espera te proporciona. A única outra fila tão grande que frequentei na minha vida foi para transferir o título de eleitora no último dia do prazo antes das eleições presidenciais de 2018. Valia a pena, né. Foram mais de três horas, só não deve ter sido mais difícil que uma maratona aquática em mar aberto. Cheguei a cogitar a possibilidade de armar uma barraca ali mesmo e economizar no aluguel por uns meses. É sério, a espera foi tanta que a mãe de uma adolescente ligou para o tribunal regional eleitoral só pra saber se a filha ainda estava viva.
Perto disso, a marcha da vacina foi fichinha. Uma hora e vinte depois da largada, informei meu CPF, mostrei o comprovante de residência (menos de 30% de bateria) e segui para a vacinação na tenda azul. Havia uma tenda azul e outra branca, fui direcionada para a azul. Gosto dessa cor. A aplicação da primeira dose era feita a toque de caixa, e eu tentava adivinhar para qual cabine iria ser chamada. Perto da linha de chegada, todos os participantes tinham acelerado o ritmo. A senhora na minha frente na maior tranquilidade como se estivesse apenas na fila da padaria -- com agilidade, sem grandes emoções.
Enfim, veio a aplicação da vacina. Saí apressada pra não atrapalhar o fluxo e, sentindo o sol me esquentar, engoli o choro e segurei forte o papel com a previsão da minha segunda dose. Sentia o medo de não estar pronta para voltar, um medo que também é sobre não saber se vai dar pra voltar ou quando vai dar pra voltar. O medo de talvez estar me antecipando ao pensar em volta alguma.
Não tirei uma foto, então me sentei e escrevi.
outra dose
Casa de praia, episódio 1 -- Recomeços: o primeiro texto de uma série de oito contos de Paloma Engelke, editora do Valkirias e pessoa da internet. A história é sobre duas irmãs, sobre se reconectar ao passado e, bem, sobre uma casa de praia. Já estou ansiosa para os próximos capítulos.
Esbarrei com Paloma no curso Técnicas criativas para transformar ideias em textos de Aline Valek, e a série de contos é um projeto que ela deu andamento a partir das aulas. Ainda estou no comecinho do processo, vamos ver o que vai surgir por aqui. Pra dar um gostinho de casa de praia, um trecho:
Minha irmã Julia e eu ali, paradas na calçada, encarando aquela porta verde descascada pelo tempo, as paredes brancas encardidas pela umidade. A falta de cuidado reinou desde o falecimento do meu avô, cinco anos atrás, quando minha avó aceitou ir morar com a minha mãe e a casa de praia ficou fechada. Ninguém sabia o que fazer com ela. Aquela construção, tão sólida e inabalável quanto todo mundo achava que meu avô era. Até o dia em que ele tombou no chão da sala e nunca mais acordou. A casa agora parecia a ponto de fazer o mesmo, envergada sob o peso de tantas memórias que se acumulavam umas sobre as outras, memórias que ninguém tinha mais o tempo ou a energia para relembrar.
saideira
série.1 -- A quarta temporada de Atypical (Netflix), série que comecei a ver por causa de um spoiler. Os últimos episódios falam muito sobre encontrar o que te dá brilho nos olhos, e isso dá pra levar pra vida, não só nessa fase de final da adolescência que é comum à maior parte dos personagens.
série.2 -- Saiu o primeiro episódio da segunda temporada de The L Word -- Generation Q (meios alternativos; talvez Amazon Prime futuramente).
Quem também está assistindo? O roteiro não é lá grande coisa. O diferencial é ter um vislumbre do que seria um encontro com Gigi (à direita na foto), sentada na bancada de um bar chique.