Pacote completo
#7 -- estudo preliminar sobre comportamento felino; uma pequena reflexão sobre a tia dos gatos; família tradicional sapatão
Todos os gatos são irritantes. Cada gato irrita o seu dono de um jeito diferente. Escutei essa releitura acidental da abertura de Anna Kariênina como um ataque. Quer dizer que eu não sou a única pessoa a desmontar toda a parafernália da mesa de trabalho no final do dia com medo do que os gatos podem aprontar com o equipamento do escritório? Todo mundo sofre ao ser acordado pelo gato 10 minutos antes do toque do despertador? O seu gatinho também tem a mania de usar a caixa de areia justo quando você senta pra almoçar? Eu, hein.
São duas as feras daqui de casa. Estalinho é um frajola gordinho de quase seis anos que pede pra ser penteado quando estou arrumando o cabelo na frente do espelho. Sid “Aparecido” Vinicius, o caçula, é um gato cinza e branco de pelo curto que adora sair pra passear no jardim. Os jaguarinhas estão na minha vida há mais ou menos dois anos, desde que engatei o namoro com a sulista -- ela vai odiar ser identificada como A Sulista, melhor dizer A Paranaense. Sid e Estalinho vieram junto com o pacote.
É uma pena que eu tenha perdido toda a infância dos meninos. Só me resta ouvir mais uma vez a história de como Estalinho era um gato de lar temporário, o último da ninhada a ser adotado. O apego foi tanto que a adotante em potencial teve que ir embora de mãos vazias. Estalinho ficou. Já Sid foi encontrado entre carros estacionados numa rua qualquer do centro da cidade -- por isso ganhou o nome de Aparecido. O gatinho perdido foi divulgado nas redes já com a esperança de que nenhum dono aparecesse.
Que fique claro que antes de conviver com os gatos eu era chegada mesmo em poodles. Piteco e Lucky haviam sido os únicos animais de estimação da minha vida. Ao conhecer Estalinho, tentando agradar o primogênito, ousei fazer cafuné naquela barriga branca e fiquei presa na armadilha do gato. Que vacilo. Era esse nível o meu de desconhecimento sobre felinos.
Hoje sou eu que acordo quase todos os dias pra dar comida aos famintos às quatro ou cinco da manhã. E nesse mesmo instante escrevo esse parágrafo com apenas a mão direita. A esquerda está segurando um punhado de ração que jogo de tempos em tempos pro Sid correr um pouco e parar de miar na porta. É ótimo ser uma humana domesticada.
Essa questão do acordar é um embate recorrente aqui em casa. Já fui a possuidora de um sono de pedra. A infância nos anos 90, dormindo numa cama de cadeiras de plástico até as quatro da manhã enquanto mamãe farreava, me preparou para ter um sono de dar inveja. O problema é que faz pelo menos cinco anos que de uma hora para outra eu passei a acordar com facilidade. Pode ser com alguém guardando a louça do escorredor, pode ser com Sid Vinicius enfiando apenas uma unha na cortina do quarto, provocando um som irritante e repetitivo digno de filme de terror até que eu levante da cama.
O ritual da unha na cortina acontece depois que já dei comida, limpei a caixa de areia, chequei se a fonte dos gatos parou de funcionar durante a noite, eventualmente até dei água da torneira. Tratamento de luxo. Ele quer é que eu levante, comece o meu dia e passe um cafezinho forte para que ele possa voltar à cama e dormir como um rei.
A única forma de burlar o sistema é sair da cama, vestir o roupão, ler um pouco no kindle pra nem ter que acender a luz e esperar até que Sid sinta que cumpriu a missão do dia. Só dá pra entrar de volta nas cobertas se ele realmente pegar no sono. Nem sempre dá certo, e termino esse parágrafo sentindo um sono que não existiria caso a criatura tivesse me deixado dormir os 40 minutos que faltavam antes do meu despertador oficial tocar, o do celular. O velho ditado sobre acordar com as galinhas pode ser substituído pela versão millenial de acordar com os gatos.
Ao longo do dia, só preciso me preocupar pra não dar bobeira e levar um bote do Sid quando ele está miando, pedindo algo que não posso fazer naquele momento. Imagine a cena. Ele está clamando por atenção, eu trabalhando, levanto da cadeira pra reabastecer minha garrafa d’água e sinto uma pressão na batata da perna. Sem dúvidas, é Sid Vinícius que saiu em disparada como uma jaguatirica e fincou os dentes na carne flácida das canelas de quem não caminha mais os costumeiros dez mil passos por dia por causa da pandemia. A vantagem do inverno é que são muitas camadas de roupa a vencer para ter acesso a um pedaço de pele.
Que tipo de coisa ele pede nesses momentos? Ou pra brincar de correr atrás de ração ou pra passear. Essa invenção de gato passeando começou com Sid, o gato topa-tudo. Espantoso foi quando Estalinho começou a pedir pra passear também. Nas primeiras idas do irmão, ele ficava na janela com aquela cara de dúvida -- “será que compensa ir nesse rolê?”. Certa vez, miou escandalosamente até conseguir descer pela primeira vez ao jardim -- cercado por muros altos, importante frisar -- num misto de medo e curiosidade.
Houve uma fase em que a relação do Estalo com a aventura representava tudo o que eu sinto sobre sair de casa durante o confinamento. Quando cercada pelas paredes, quero sair correndo e viver o mundo. Quando chego lá, quero voltar correndo para a segurança da minha casa.
Agora virou foi palhaçada. Até o Estalinho fica de olho quando estou me preparando pra descer o lixo, doido pra descer junto, cheirar as plantas e rolar no chão. Nem parece o gato difícil que precisava ser lembrado de que ele gostava de passear, que não ia querer ficar em casa sem o irmão. Nisso somos parecidos. Eu e Estalinho unidos pela teimosia.
Tenho essa memória de infância de quando não consegui decidir a roupa que ia usar pra sair porque, na verdade, não sabia se queria ir junto. Quando vi o carro subindo a ladeira de casa, sem mim, era óbvio que queria ter ido, só estava enrolando. Nas minhas lembranças, ver a minha irmã no banco da frente me deixou ainda mais frustrada com a situação. Mas isso já não sei se é memória inventada ou apenas um absurdo dos anos 90, já que a minha irmã também era uma criança.
Fora isso, Estalinho só exige ser alimentado nas horas certas e depois se dedica aos cochilos, passa boa parte do dia trancado no quarto dele -- nosso guarda-roupa. Sid aparece bastante na crônica porque é um gato que sabe aporrinhar. Estalinho foi mais difícil de ser conquistado e agora deita tranquilamente do meu lado, enquanto escrevo.
Percebi que todas as barreiras entre a gente tinham caído quando ele passou a dormir esporadicamente do meu lado da cama. Trocamos o lado e, mesmo assim, ele continuou vindo. Nos tempos em que trabalhava fora de casa, ele ficava seguindo meus passos antes de sair e quando eu chegava. É um gato de coração mole e com a alma de fofoqueiro. Não dá pra esquecer do dia em que estávamos na cozinha preparando algo pra comer, ouvimos um barulho de acidente na avenida e a criatura saiu em disparada para a janela na tentativa de saber o que aconteceu.
Quer dizer que agora sou uma gateira? Já dá pra cravar isso? Sou uma pessoa dos gatos? Cat person é um termo redondinho do inglês pra se referir a quem prefere gatos. E a expressão me leva diretamente a 2017, ano de publicação do conto Cat person de Kristen Roupenian na revista The New Yorker. Não é todo dia que um texto desses causa tanto burburinho e vira assunto nas redes sociais por semanas. Ainda mais um texto que, em geral, fala sobre relacionamentos e é narrado por uma mulher.
Naquele ano, eu ainda vivia como uma hétero e nem tinha contato com gatos. Pensando bem, nem o personagem da história tinha contato com gatos. Ele tinha dois bichos de estimação que nem apareciam na noite do encontro, não era isso? Será que os dois gatos eram tão tímidos assim? A ponto de nem pedir comida quando o cara chegou em casa? Sei não. No texto, me identifiquei muito com o perrengue de sair com caras porque o desastre das relações heterossexuais era coletivo. O problema parecia não ser só comigo.
Por aqui, temos a expressão “tia dos gatos”. A imagem que me vem à cabeça é a de uma solteirona sentada na poltrona de frente pra TV e cercada por pelo menos quinze gatos de todas as cores e tamanhos. Talvez até seja possível ser um tia dos gatos não-solteira, o que vale é o espírito de tiazona. Foi já no mundo sapatão que fui saber do estereótipo do casal de lésbicas com gatos. E fui conhecer vivendo, na prática, a família tradicional sapatão.
outras doses
sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa -- Taizze retomou os envios, agora com um projeto de newsletter ficcional. Já teve introdução sobre os textos como uma forma de ficcionalizar a vida real e o primeiro capítulo, que começa com uma bela e cruel verdade: “A pior história de amor é aquela que não acontece.”
fogo baixo -- o tema do segundo texto da Flávia foi fragmentos de arroz, indignação virtual, políticas públicas de segurança alimentar e honestidade argumentativa. É um boletim informativo, foge um pouco do que costumo acompanhar e recomendar no mundo das newsletters, mas o projeto se destaca por propor textos de cocção lenta sobre alimentação, culinária e gastronomia. Leio o que a Flávia escreve sobre comida e afins desde nossos tempos na faculdade de jornalismo.
resumo-pra-quem-tá-com-preguiça-de-ler: Eu concordo com o coro que se indigna com o preço do arroz, mas que o fragmento de arroz será uma realidade no prato do brasileiro… aí já fica mais difícil de afirmar. Sua presença no varejo não é representativa, seu valor comercial é menor e, para aumentar a oferta, a indústria teria que quebrar parte da produção de alto valor para vendê-la mais barato. Faz pouco sentido.
saideira
No último final de semana, eu devorei Polícia da memória, da autora japonesa Yoko Ogawa. Era um livro que estava no meu radar por diversas recomendações, peguei quando tinha ido na livraria comprar outro título e adorei. Fiquei surpresa com o tanto de coisa que acontece na história, tinha a impressão de que seria uma leitura lenta, ainda bem que estava errada. Fica aqui a minha indicação porque vai que um dia você tá na livraria, dá de cara com essa capa e decide levar o livro pra casa?
O envio dessa edição só foi possível graças ao apoio de Sid Vinicius, que me acordou muito cedo nos últimos dias e eu aproveitei o silêncio matinal para escrever antes do trabalho. Também não teria coragem de ir embora sem mostrar as criaturas. É com honra que vos apresento:
Mudei de endereço, agora estou no Substack. Talvez dê pra perceber alguma mudança na configuração do e-mail. Agora pretendo me aquietar na casa nova, pretendo mesmo. Tenho essa tendência de ficar pulando de galho em galho em todos os aspectos da vida, também preciso ficar um tempo parada num mesmo lugar. Eu tinha alguns incômodos sobre o layout do Letterdrop, e é isso. Ainda tô arrumando as páginas internas, então façam o favor de NÃO clicar em nada até a semana que vem.
Eu fui muito contemplada pela porção gatal dessa news e pretendo adotar a estratégia do 'caça ração' hoje mesmo.
Ameeeei A Polícia da Memória, é tão forte e delicado esse livro! Encantada com a escrita e como em poucas páginas ela consegue movimentar tanta coisa ❤️