Diário do fim do amor
#67: "um diário é do tamanho de uma vida, então nunca será pequeno"
Eu não releio diários. Nem os meus, nem os dos outros. Uma vez tentei ler o da minha irmã a escondidas. A curiosidade pelos sentimentos de alguém que ainda dividia o quarto comigo não foi suficiente para me fazer insistir na leitura. Não me interesso pelos diários publicados de autores conhecidos, sinto falta da edição. Quanto aos meus, não vejo muito sentido na releitura. Me considero uma chata no papel, a pessoa mais desinteressante do mundo. E depois não sei se estou pronta para encontrar o que está registrado em todas essas páginas antigas.
No livro "Diário do fim do amor", a escritora gaúcha Ingrid Fagundez faz o que ela define como uma ode aos diários. São trechos de seus próprios cadernos pessoais intercalados com um ensaio fragmentado sobre o ato de registrar a intimidade no papel. O episódio da vida da autora escolhido para representar seus escritos em diários é o fim desastroso de um relacionamento. Um daqueles finais caprichados. Nada parecido com aqueles fins que se dão de uma hora pra outra, de forma abrupta. O término se estende por anos num vai-e-volta de me diz de novo que você não me quer mais. Um bom tempo pra meter o dedo na ferida. Passando por uma mudança na vida profissional, um período fora do país e uma jornada para se tornar escritora.
É bem equilibrada a dosagem das entradas autobiográficas com as reflexões mais teóricas sobre diários. Ao longo da leitura, fica tênue a separação entre a mulher que estuda diários e a mulher que registra em cadernos da vida como foi sofrido o fim de um amor. A pesquisadora de não-ficção invade os sentimentos da outra com o coração partido.
Os dois lados da autora se misturam ainda com as passagens de escritoras conhecidas também pelo ofício de diarista, como Sylvia Plath, Virginia Woolf, Anaïs Nin e Susan Sontag. Uma voz que se destaca, e que eu pelo menos não conhecia, é a de Marie Bashkirtseff, uma russa emigrada para a França que ficou conhecida por suas pinturas e seus diários ("Pobrezinha de mim! Essa palavra 'amor' tantas vezes repetida!"). O fator novidade me deixava interessada em saber mais da sua vida e de seus escritos sempre que o nome aparecia nas páginas. Todos esses trechos pinçados de outros diários ajudam a compor o andamento do enredo que está por baixo de uma camada de narrativa fragmentária.
“Se fosse possível amarrar as quedas do amor em um único fio, talvez ele fosse assim, datado e anônimo, porque a cronologia impõe-se, mas os desamores não precisam ser identificados, tão parecidos que são na sua decadência. Um cordão só, feito dos diários das autoras citadas neste livro, em que os anos se seguem e se fundem…”
Com capítulos curtos, o livro tem um ritmo que te faz virar as páginas rapidamente, juntando peças entre poemas escritos na beira do Pacífico, frases entreouvidas no ônibus a caminho do aeroporto e encontros perto de um cemitério de São Paulo. A leitora anseia pelas passagens do diário do fim do amor, inevitavelmente torcendo para que o desamor tenha desenlaces cada vez piores, cada vez mais perturbadores.
Penso na insistência em falar sobre um término de relacionamento. Não mostrar como uma pessoa deixa de gostar de outra. Tudo já está acabado, mas as pessoas não se separam. Não de verdade. É uma decisão de abordar um tema tão íntimo que, na leitura sobre experiências parecidas, vemos todas as afinidades que existem entre tantos tempos, lugares, vidas.
A partir de qualquer outro recorte, a análise dos diários poderia tomar caminhos diferentes. Para quem também não tem paciência para encarar todos os volumes de diários de Sontag, por exemplo, livros como o Diário do fim do amor entregam um gostinho do que escritoras decidiram registrar no papel.
Depois de ler, escrevi no meu diário (hoje costumo chamar apenas de caderno) mais sobre a autora do livro do que sobre o livro em si ou a temática de fim de relacionamento. A que escolhi chamar antes de escritora gaúcha em honra ao nosso passado comum de jornalista, seria o que eu escreveria numa matéria de jornal. Pois Ingrid é uma amiga de juventude. Deixo para o diário os detalhes da emoção que é ler um livro de uma amiga e perceber que a voz do texto é a voz da escritora que vi se formar nos últimos anos.
“23 DE ABRIL DO ANO 4
Por que meus textos são fragmentos? Por que não confiam em si para seguir por páginas, construir histórias, carregá-las. Porque são soluços - repetitivos, curtos, reflexos autômatos - por isso tantas vírgulas e o ritmo sôfrego, por isso linhas tão ansiosas por chegar ao fim.”
hoje, 27 de março, é o evento de lançamento de Diário do fim do amor (Editora Fósforo) na Livraria da Travessa, em São Paulo. escrever sobre o livro é a minha forma de estar mais perto desde Curitiba.
gostei dessa sinopse divulgada no site da quatrocincoum:
”Livro de estreia da jornalista e professora gaúcha, em que aborda a função dos diários na literatura, enquanto traça um panorama histórico pelo subgênero e reflete sobre sua associação costumeira ao universo feminino. Pensando no formato como uma transformação da literatura no século 20, Fagundez intercala sua pesquisa sobre textos de Sylvia Plath, Susan Sontag, Virginia Woolf, entre outras, às experiências com o próprio diário.”
sobre a na newsletter Índice, Ingrid diz: “prefiro os gêneros marginais e fronteiriços: as misturas de ensaio, memória e teoria da não ficção literária, os fragmentos, as cartas, os diários, as listas.”
mais doses
Perdendo dentes, uma epopeia sobre a dor (este não é um relato sobre uma cirurgia de sisos que deu errado, pode ir sem medo, é um texto da Anna Vitória)
Uma análise do episódio mais recente de The Pitt (é oficial, estou de volta ao mundo das séries médicas)
Indicações de livros sobre diários na newsletter A Lábia
Caderno andante, na seção paga da newsletter da Luisa Manske:
“Tenho cadernos para várias coisas diferentes e compro sempre aqueles do tamanho de cadernos de escola, pequenos e simples, para eu poder usar sem dó e carregar comigo com facilidade. Mas lá pelas tantas, comecei a sentir falta de um caderno menor, que coubesse em qualquer bolsa pequena ou mesmo bolso de alguns casacos. Um caderno para anotações variadas que eu fizesse na rua, em algum evento ou no trajeto de um lugar para o outro. Algo que me permitisse não precisar contar com a memória e nem com as notas do celular. Um caderno andante.”
opa, vou colocar na lista de futuras leituras. eu particularmente amo diários alheios, ainda que nunca tenha conseguido manter um.
Que saudosismo ver sua letra em papel, Luisa!