Um gostinho de home office
#10 -- preocupações inoportunas; não imaginei que falaria tanto sobre o uso de sutiã; evitando a contagem regressiva para o trabalho presencial
No primeiro dia trabalhando de casa, estava servindo o almoço no prato e, quando me espanto, lá estava o gato Sid Vinicius em cima da mesa, lambendo as rodelas de pepino recém-cortadas. Levei a criatura de volta para o chão e pensei: como é bom estar em casa. Na segunda semana, comprei uma luminária de mesa e uma cadeira ergonômica. Era o que faltava pra ter um canto de escritório apropriado pro expediente de oito horas diárias. A partir da terceira, parei de registrar impressões sobre essa nova fase de confinamento.
É setembro de 2021 e estou me preocupando com questões já superadas pelo resto do mundo desde o primeiro ano de pandemia. Ou que deixaram de ser preocupações quando bastante gente voltou a trabalhar presencialmente. Como estabelecer uma divisão entre a casa e o escritório improvisado? Como adaptar o ritual de sair do trabalho que, em outros tempos, seria o óbvio trajeto de transporte público até em casa? Como parar de pensar na solicitação de cliente ainda não respondida se o equipamento da empresa me encara 24 horas por dia?
Não é como se eu nunca tivesse trabalhado de casa. Eu era uma jovem senhora estagiária de repartição pública quando o governador decretou que deveríamos ficar em casa. Isso quer dizer que, na prática, eu não tinha exatamente uma rotina a ser seguida todos os dias. Voltei ao mundo da CLT meses depois, caindo na isca no “termo de trabalho home office” só pra ter que viajar a trabalho e passar duas semanas alocada em hospitais, sendo um deles destinado ao tratamento de pacientes do novo coronavírus. Fiz um exame PCR na faixa (resultado negativo) e troquei de emprego.
Pulei de uma furada pra outra. Melhor já chegar sabendo da presepada do que ser iludida em processo seletivo. Afinal, entrevista de emprego é pior que um encontro às cegas. Trabalhar presencialmente no ápice da segunda onda do corona foi acabando com as minhas forças a ponto de não conseguir sequer continuar a busca por uma vaga que me permitisse ficar em casa.
Era uma ironia desagradável ter passado tantos meses em casa quando os índices de mortes e internações não estavam tão ruins assim (é muito fácil dizer que os índices não estavam tão ruins assim depois que vimos o fundo do poço) e justo no pior cenário ter que sair por um trabalho que poderia ser feito remotamente. A vontade era de poder deixar o meu lugar na cidade para quem realmente precisava sair. Eu me sentia culpada por não colaborar com o enfrentamento da pandemia como se eu e os demais passageiros da linha Cabral-Portão às sete e meia da manhã tivéssemos alguma escolha.
Foi só comprar uma escrivaninha que arrumei um emprego em regime home office, um legítimo emprego em regime home office. Existe magia em fazer certas compras em loja de departamento, só pode ser isso. Um acordo entre o misticismo, a carteira de trabalho, com tudo. O segredo é real. (A busca por trabalho na pandemia é assunto pra outra crônica.)
Agora sobra tempo pra pensar: será que devo me arrumar antes de começar a jornada? Será que faz sentido colocar uma roupa de trabalho? É possível se atrasar quando você não pode culpar o transporte público? Se eu bater meu ponto todos os dias às 9 vai parecer que a minha pontualidade é forçada?
O meu único pré-requisito é trabalhar de sutiã. Não preciso de uma calça ou uma camisa pra me sentir uma profissional. Pode ser o sutiã embaixo do pijama mesmo. Um sutiã confortável, mas ainda um sutiã. Como trabalhar na modalidade seios livres? Consigo não.
Seria eu uma pessoa que se distrai facilmente com os próprios peitos e, por isso, precisa da sustentação artificial? Estou embebida na convenção social de que mulheres não podem usar roupas confortáveis e que a marca de bicos de seio em camisetas é o maior crime previsto no nosso Código Penal? Sou uma mera vítima das amarras do sistema patriarcal? Literalmente?
Tudo o que posso dizer é que não é necessariamente uma questão de conforto, tenho seios pequenos, minhas costas não doem com o peso. Só que faz parte do processo de concentração. Puxar a cadeira pra perto da mesa, arrumar a postura, prender o cabelo e estar de sutiã. Como seria possível mexer em planilhas de outra forma? Só dá pra abrir uma exceção em dias muito frios. É de conhecimento geral que todas as regras são automaticamente canceladas em condições climáticas adversas.
Outra questão que me inquieta é a eterna dúvida: como separar a casa do local de trabalho? Se tem uma coisa que não tem aqui é espaço sobrando, então essa divisão tem que ser feita na minha cabeça mesmo. Na falta de um ônibus pra pegar depois das seis da tarde, eu desligo o computador da firma e pego algum livro que esteja lendo pra me levar a outro lugar. É um tipo diferente de trajeto pra sair do trabalho, voltar à superfície e seguir com os afazeres. Tendo isso em mente, pelo menos não é todo dia que eu pego o celular pra dar uma olhada no Twitter e só meu dou conta do deslize às oito da noite.
Estar em casa não significa ter disponibilidade pra fazer coisas o dia inteiro. Isso é óbvio, né? Mesmo assim, ainda estou me batendo um pouco com essa ideia. A hora do almoço não é infinita pra riscar todas tarefas pendentes da minha agenda, tipo negociar o valor de uma conta, colocar granola no forno, lavar a louça acumulada na pia desde a noite anterior. Então fico com a louça que esse é um bom serviço mecânico pra tirar as preocupações da cabeça e deixar o pensamento fluir pra outros lugares. Lavar louça é a caminhada que dá pra fazer dentro de casa. Ser flâneur entre as canecas do café e as panelas novas que ainda não perderam o teflon.
A falta de uma obrigação formal que me tire de casa tem me deixado agoniada com o confinamento. Nem faz mais sentido contar os dias trancada nesses pouco metros quadrados. Dias de sol, convidativos para um passeio no parque aqui perto, são logo substituídos por semanas chuvosas em que eu agradeço poder ficar no meu canto, com os pés secos. Às vezes, num lapso, me bate aquela vontade de fazer alguma coisa, de fazer qualquer coisa, e o impulso dá de cara com o que eu chamo de A Metáfora do Estalinho, miar em desespero para sair pela porta não significa que você não vai querer voltar correndo assim que experimentar a liberdade.
Outro dia abri uma cerveja na hora do almoço, pensando que esse momento de trabalho de casa é ter um gostinho do que pode acabar a qualquer momento. Do que vai acabar a qualquer momento. Do que vai acabar quanto a segunda dose estiver em dia. Não sei o que vai ser da minha vida quando não puder mais lavar a louça no intervalo de trabalho. Droga.
outras doses
A newsletter pessoal de Rodrigo Ghedin, do site Manual do Usuário -- Você parou recentemente pra organizar suas fotos da galeria do celular?
Não me canso de recomendar os textos da Refrescos -- destaco a edição sobre Trânsito e a mais recente, Amores perigosos.
Estrangeirismos #1 - Natureza despida -- projeto temporário da Lidy com crônicas sobre morar no exterior.
saideira
Estou de volta do meu mês sabático. Tive uma boa sequência de leituras nas últimas semanas: A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios de Gloria Anzaldúa (tradução de Tatiana Nascimento), O corpo dela e outras farras de Carmen Maria Machado (tradução de Gabriel Brum) e Minha coisa favorita é monstro de Emil Ferris (tradução de Érico Assis). Agora vou ter que prestar muita atenção no que eu leio até dezembro pra que os Estados Unidos não sejam meu país mais lido do ano. Imagina.
O que eu queria recomendar aqui, não poderia deixar de ser, é a música Meu pedaço de pecado (de corpo pelado, vem dançar comigo) que já até virou tirinha sáfico-erótica de Ilustralu. Se você ainda não ouviu o jovem cantor pernambucano João Gomes , por favor. Se já ouviu, bora ouvir de novo.
Tô querendo te beijar de novo
O teu beijo me enlouqueceu
Tudo que a gente já fez foi pouco
Quero sentir seu corpo no meu