O fim de uma amizade virtual
#47 -- as amigas de internet que ficaram pelo caminho; a separação entre mundo real e online; e um livro de contos
O último contato com bruc foi logo depois de seu aniversário de quinze anos. Cheguei a ver algumas fotos. Ela usava um vestido branco perolado, sem mangas. Devia ser verão no sul do país. bruc era de uma cidade do Rio Grande do Sul. Não, não era Porto Alegre. Assim seria fácil de lembrar.
Eu era um pouco mais velha. Estava nos meus últimos anos de São Luís, no final da adolescência. A gente só se conhecia pela internet. Depois de seu aniversário, depois de ver as fotos da comemoração numa rede social já descontinuada, perdemos o contato. Ela sumiu. Não entrou mais no messenger. Pelo menos não com o e-mail que eu conhecia. bruc, apelido para Bruna. Nunca soube seu sobrenome. Não me lembro de qualquer informação que poderia usar hoje para encontrá-la.
Comecei a pensar em velhas amizades virtuais com o livro Quiltras, da chilena Arelis Uribe. No conto “rockerito83@yahoo.es”, a narradora fala dos namoros virtuais que teve na adolescência, especialmente de um relacionamento de idas e vindas durante quatro anos com um rapaz que conheceu pelo chat do Napster. Nunca le he contado esto a nadie. Una vez tuve un pololo virtual. Un ciber novio. Un tipo que conocí por internet al que llamaba por teléfono para decirle te amo. Assim começa o conto.
Na minha adolescência, a internet era um dos poucos espaços que frequentava para conversar com pessoas que tinham gostos parecidos. Comecei muitas amizades nesse período e, por certo tempo, não falava abertamente sobre isso com as pessoas do então ‘mundo real’. Sentia vergonha por ter amigas de internet, vergonha por passar tanto tempo conversando com gente do outro lado do país em vez de me enturmar com o pessoal da minha própria cidade. A separação entre o mundo virtual e real tinha contornos mais definidos.
A gente entrava na internet em dias previamente combinados e conversava até faltar assunto. Haja esforço, penso com a cabeça de hoje enquanto me desgasto ao reservar alguns momentos do dia para responder mensagens no celular. No conto de Arelis Uribe, essas conversas prolongadas e recorrentes são descritas como “diarios de vida virtuales e interactivos”, mantidos entre quem se correspondia pela internet. bruc foi a amizade virtual perdida de que me lembrei durante a leitura.
O que terá sido de bruc? Demoro a entender esse vazio de ter perdido totalmente o contato com alguém que chegou a ser tão próxima, com quem troquei confidências. O que representou para ela o marco dos quinze anos a ponto de ter excluído toda uma presença online e talvez ter começado tudo outra vez? Será que depois passou a usar as redes sociais utilizando o nome, não o apelido? Não consegui ir longe imaginando um futuro para ela. Do que adiantaria saber que curso fez na faculdade (se é que fez), com quem estaria se relacionando hoje? Seria suficiente saber com o que ela trabalha? Ou saber se ainda teríamos algo em comum? Ver uma selfie publicada de vez em nunca seria o mesmo que manter contato?
Não sinto falta dela, não agora. Não faço questão de saber por onde ela anda. Por casualidade, lembrei de sua existência, que um dia fomos amigas de internet. Não foi a minha única amizade virtual que chegou ao fim com a trocas de perfis em redes sociais. Com certeza perdi o contato com alguém de quem já nem me lembro sequer o apelido.
No conto seguinte do livro Quiltras, “Bienvenida a Sao Bernardo”, a mesma narradora do namorado virtual relata um encontro inesperado, numa festa, com um outro cara que ela havia conhecido também pela internet. Eles saíram algumas vezes e ela logo se cansou do rapaz. Para mí, hasta ese momento, las relaciones y las amistades por internet eran menos reales, eran tangentes que desaparecían cuando apagaba el computador.
Ainda me debato com a divisão entre o mundo real e o mundo online, uma separação que hoje existe praticamente só na minha cabeça. Falar que alguém é sua amiga de internet já não causa o mesmo estranhamento de antes. O que eu sinto é uma aflição de misturar os dois mundos. E me deixar conhecer mais de alguns jeitos que eu só me sentia confortável com amizades que não estavam me vendo.
Foi lembrando de bruc que vi de perto que o passar do tempo influencia as relações virtuais como faz com as relações de meios antes mais tradicionais (bairro, escola, faculdade, trabalho). Acompanhar alguém pelo instagram não é o mesmo que manter contato. Já não existe essa falsa obrigatoriedade de seguir de volta seus antigos colegas de escola para não desfazer de vez os laços com alguém, se recusando a deixar o passado ir. Ficar quieto no canto dele. A diferença é que quando você perde contato com alguém que conheceu na internet e de todas as pessoas que vocês tinham em comum é que não sobra ninguém para chegar e perguntar: te lembra de bruc? o que terá sido dela?
mais doses
- Quiltras (Arelis Uribe, infelizmente sem tradução para o português) é um livro curtinho (88 páginas!) com sete contos sobre mulheres jovens e adolescentes que moram nos arredores da capital chilena ou em cidades mais afastadas. Quiltra/quiltro é um chilenismo para vira-lata. São histórias sobre contrastes de classe, amizades e algumas relações entre mulheres. A identificação bateu forte aqui na relação das protagonistas-narradoras com a internet no final dos anos 90 e começo dos anos 2000. Mais uma surpresa boa ao começar a ouvir um audiolivro sem esperar grande coisa.
- O nós na internet, um ensaio sobre nossas amigas de Instagram (Isadora Sinay), que reli antes de enviar este texto.
- No feriado, visitei a Bienal de Quadrinhos de Curitiba. Destaques do evento: conheci o trabalho da uruguaia Maco e ganhei a hq Isolamento, de Helô D’Angelo. No livro, a pandemia é apenas um pano de fundo. A melhor parte é acompanhar o desenrolar da vida de moradores de um mesmo edifício a partir do que eles mostram de suas janelas para a vizinhança.
- Vi o documentário Retratos fantasmas no Cine Passeio, um bom cinema de rua em Curitiba, depois que li o Davi Rocha falando sobre filmes difíceis de encontrar no streaming.
- Um filme que me deixou vidrada (e olha que eu costumo dormir ao menos um pouquinho em 99,99% da coisas que vejo na TV) foi NOPE, do diretor Jordan Peele.
- A edição cartolinas brancas, canetas coloridas - memórias que escapam das páginas escritas por Elena Ferrante, na newsletter peixe na glote.
- Frio, na newsletter correio do sul do sul: “quero falar sobre outro tipo de frio: o da salas de aula vazias na universidade onde leciono, ao contrário do teto sem reparos que se encontra com uma colônia de fungos aninhados, acavalados um sobre os outros como que esperando ávidos pelo listão do vestibular. É o teto por onde passam as goteiras. Se quando ingressei como docente lá o maior problema era a brutal evasão, hoje ela também está somada à falta de procura, inversamente proporcional às infiltrações no telhado.”
adorei! queria que um dia chegasse na bruc esta edição 🧡
Lembrei algumas amizades virtuais perdidas também. E coloquei NOPE na lista, gosto muito do estilo do Jordan Peele.