Memórias de Zélia Gattai
#35 -- relembrando a minha relação com a autora de 'Anarquistas, graças a Deus'; a figura da mulher de escritor e um jeitinho de falar sobre Elena Ferrante
A minha história com Zélia Gattai começa com o livro A casa do Rio Vermelho. Antes disso, com um curso sobre a obra memorialística de Zélia. Antes ainda, com a casa no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O endereço é conhecido: Rua Alagoinhas, número 33.
Calhei de estar na cidade, onde mora boa parte da minha família paterna, na semana de inauguração do museu construído no local onde ela viveu com Jorge Amado. Me encantei primeiro com a casa, depois com a escritora.
Zélia escreveu livros de memórias. Uma ou outra história infantil no meio da obra e apenas um romance, com fortes traços autobiográficos. O livro de estreia foi publicado aos 63 anos.
Anarquistas, graças a Deus retrata a sua infância numa família de imigrantes italianos (metade da família era anarquista, metade católica) na Alameda Santos, rua paralela à Avenida Paulista. É uma autora de mais de 60 anos que reproduz a sua visão de menina. Dizia ela que não tomava notas. Nem consigo imaginar Zélia mantendo diários. Devia ser do tipo de pessoa que ficava no centro das conversas.
Em seus livros, as histórias são narradas como anedotas fresquinhas recém tiradas de anotações antigas. E, na verdade, são histórias relembradas. As mais interessantes dão a impressão de terem sido contadas tantas vezes que realmente nem precisariam de registro em papel.
O que diferencia o estilo de Zélia é conseguir passar tão bem para os escritos essa oralidade típica do contar histórias numa roda de amigos. Amigos, que no caso dela, seriam personalidades conhecidas no circuito cultural. Outros escritores, poetas e militantes do Partido Comunista. Um povinho aí no naipe de Pablo Neruda.
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Na minha primeira leva de leituras de Zélia Gattai, os meus títulos preferidos foram Senhora dona do baile e Jardim de inverno. Relatos que se passam num período de exílio iniciado na Era Vargas, quando Jorge era deputado federal. São livros pesados, mas o tom bem-humorado das crônicas persiste.
Sábado passado, estive na biblioteca pública e aproveitei para conhecer a prateleira de Zélia, na seção de literatura brasileira. Se já havia passado lá antes, não lembrava. Aproveitei pra pegar um livro que ainda não tinha lido e vim embora com Chão de meninos, que fala sobre o retorno da família Amado Gattai ao Brasil, um pós-exílio vivido no Rio de Janeiro.
Comecei a sentir um incômodo familiar lendo como Zélia se refere à classe trabalhadora ao seu redor. Fazendo graça do jeito de falar de uns. Usando o espaço do livro para desmerecer o trabalho de alguém. Seja a empregada doméstica, seja os moradores de favelas que recebem a ‘catequese comunista’ a mando do partido. Já tinha lido esse livro antes, seis anos atrás. Com uma funcionária em casa, recebendo sabe-se lá quanto pelo trabalho, Zélia ficava livre para levantar fundos financeiros para o Partido. Mais uma esposa de militantes ilustres.
Nunca me esqueci de uma cena no livro A casa do rio vermelho, quando Zélia comenta sobre a demora de uma repaginada no jardim da propriedade. Culpa do jardineiro, é claro, um baiano preguiçoso. Eu, incrédula como leitora, percebia que estar inserida numa família de pessoas baianas não era o suficiente para alguém pensar duas vezes no que estava escrevendo.
Imagino essa Zélia mais velha escrevendo livros de memórias sem interferir nos pensamentos do passado. Pensou assim até o fim ou quis retratar o momento histórico. Abrindo o jogo, sem reservas. Em todo caso, ler o que a própria pessoa escreveu é ainda mais difícil do que perceber a hipocrisia nas entrelinhas. Fico com esse retrato da classe intelectual daquela e de qualquer outra época.
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Zélia não é a esposa de escritor perfeita. Não tem textos combativos. Deixa de falar de temas importantes que acaba apenas mencionando nos livros. Ao acompanhar Jorge no exílio, teve que deixar no Brasil o filho do primeiro casamento. Diz que por questões legais. O que eu não daria para ler Zélia falando com franqueza sobre isso.
Em entrevistas, repete com uma frequência suspeita que não tinha voz para dar pitacos nas histórias de Jorge. Era ela que datilografava os garranchos dele. Quando se conheceram, não sabia usar a máquina de escrever para redigir um memorando. “Que moça inútil”, teria dito o escritor. Fez o curso e assumiu o cargo vitalício de datilógrafa particular.
Depois que começou a escrever suas memórias, aproveitava a habilidade para digitar rapidamente e ter um tempo para a própria escrita antes de receber mais folhas de rascunhos para passar a limpo. Escrevia nos intervalos.
A insistência em fazer questão de sair falando que não teria qualquer influência nos enredos de Jorge me deixa desconfiada. Que não pudesse salvar uma personagem da morte até vai. Mas não alteraria uma frase? Não inverteria uma ordem de palavras? Não editaria nadinha do texto? Não conversariam sobre um entrave na história enquanto tomam café no terraço de casa?
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Nos ensaios do livro As margens e o ditado, Elena Ferrante comenta a Autobiografia de Alice B. Toklas, escrito por Gertrude Stein. O ponto de vista da narradora é uma Alice que observa e narra a vida de Gertrude. Fui buscar esse livro na biblioteca quando parei na prateleira de Zélia Gattai e acabei trazendo pra casa um livro que já tinha lido (e que com certeza não está entre os meus preferidos).
Ainda não cheguei na parte em que a relação de Alice e Gertrude é abordada. Se é que a relação será abordada abertamente. O que me interessou na leitura é que o livro faz um jogo entre a ‘figura da escritora’ e da ‘mulher de escritora’. Ferrante fala de um vertiginoso elemento perturbador da ficção: “Toklas é a datilógrafa real dos textos de Stein, é quem a ajuda a corrigir os esboços”. A ‘falsa autobiografia’ causa o efeito de que é um texto elaborado pelas duas.
Na hora, me lembrei de uma foto do casal Amado Gattai. Jorge está sentado atrás da máquina de escrever, provavelmente na casa do Rio Vermelho mesmo. Zélia está de pé, do lado esquerdo, curvada sobre o ombro de Jorge para dar uma olhadinha no papel que o marido segura. Parece uma foto posada às avessas. Talvez o comum fosse Jorge de pé, de olho no serviço de datilografia. E o que temos é essa imagem de Zélia, atenta, concentrada, só esperando a melhor oportunidade para dar um pitaco.
outras doses
Zélia Gattai: um resgate das memórias da escritora paulistana -- texto que escrevi em 2017 para o Valkirias logo depois de conhecer os livros de Zélia.
O corpo, a escrita e A Vida Mentirosa dos Adultos -- Isadora Sinay escreve sobre adaptações de livros para o audiovisual.
A troca de cartas entre Ariela K. e Vanessa Guedes sobre veganismo -- Responder a todos #1: Ética pessoal e comunidade, o churrasquinho e a cervejinha e Resposta aberta a Ariela K. -- Fogo, veganismo e os direitos das mulheres.
O que chamamos de cotidiano -- Carla Soares escreve sobre referências do passar do dias.
Maravilhosas, você e Zélia e essa edição! Nossa, adorei ver você apontar as incoerências de Zélia, dos assuntos que pecam por falta. Qual a história de Luís Carlos? Ele ainda é um bebê quando ela se apaixona por Jorge, mas não sabemos por que ela não é a cuidadora principal dele. Isso sempre me deixava com uma pulga na orelha, aguardando a explicação, e as repostas não vinham. Achei que em algum livro pudessem aparecer, claramente é um assunto espinhoso, que ela prefere não abordar. Mas não é aquilo que mais temos medo de escrever que devemos escrever, já disse Nayyirah Waheed?
Sobre os pitacos, eu tenho duas teorias que cultivo em paralelo: na primeira, com ceeeerteza que Zélia dá pitaco. Com todas aquelas opiniões, tanto a dizer e a contar, tão fã, como ela não teria sugestões e críticas perfeitamente cabíveis para acrescentar aos textos de Jorge? É óbvio que tinha. Mas o segredinho dos dois é que ela "não dá". Ou não, ela não dá nenhum pitaco mesmo, ela só datilografa. Mesmo como uma mulher extremamente independente e autêntica, Zélia ainda vivia numa época em que a luta feminista só chegava a certo ponto. Zélia não alimentava suas opiniões sobre os escritos de Jorge, porque não lhe cabia opinar. Se ela repete essa informação ou (1) é para esconder o fato de realmente dar muito pitaco ou (2) porque queria dar vários e não se sentia apta. Algum dia saberemos?
Que edição deliciosa! Li Anarquistas muito novinha, minha avó era leitora apaixonada por Zélia e sempre recomendava. Mas, acho que precisaria reler, com a cabeça de hoje... tantas nuances!
Fiquei ainda mais tentada com o livro da Ferrante. A Autobiografia está na minha lista sem fim de leituras e bem... Vai ficando!
Mas eu amei. Amei forte e fiquei ainda mais tentada a mergulhar fundo nessas páginas...