Fios brancos
#33 -- ser grisalha aos 30 anos; perceber que o dilema de assumir ou não os cabelos brancos chegou ao fim
O inconveniente de ter cabelo grisalho é que os fios brancos que caem no chão se destacam no piso escuro, enquanto os fios castanhos ficam todos salientes no piso de tom mais claro. Pra facilitar a vida de quem perde muito cabelo, aqui em casa temos os dois tipos. De cabelo e de piso. Isso sem contar a dificuldade de uma míope catar um cabelo branco num fundo também branco.
O mesmo vale para a cor das roupas. Cabelos escuros nas roupas brancas. Cabelos brancos nas roupas pretas. Sabe aquela dica para quem tem gato de abraçar a cor da pelagem do bicho na hora de montar seu guarda-roupa? A maior balela. Gato preto, roupas pretas. Gato branco, roupas brancas. Parece simples. Até você olhar para os seus gatos e perceber que um é preto e branco. O outro cinza e branco. Fácil, fácil.
Da última vez que cortei meu cabelo (no salão de bairro, é claro), me livrei de vez das pontas com resquícios de tintura castanha. Não é possível que ainda tenha um fio tingido na cabeça. A não ser que um dos meus folículos pilosos tenha um desenvolvimento mais lento que os demais, produzindo um crescimento retardatário de um único fio de cabelo ainda pintado e grudado na minha cabeça há quase três anos.
Como parei de pintar no comecinho da pandemia, passei pela transição escondida do resto do mundo. Voltando ao convívio social, a transição já estava QUASE LÁ. Não demorou muito até restarem só umas pontinhas pintadas que resistiram ao meu medo de ficar com o cabelo curto demais.
Três anos é tempo. Mais que um mestrado, menos que um mandato eletivo. Não dá pra fazer uma graduação, mas talvez um curso técnico. Sou técnica em ter cabelos brancos. E agora que já tenho uma experiência técnica na vida de uma mulher grisalha posso dizer o que diria qualquer outra pessoa da área: a gente se acostuma.
Esquece que tem algo fora do comum na aparência. Esquece que já cismou com a combinação da cor do cabelo natural com a cor da pele pálida de um jeito que só o sol fraco de Curitiba pode te proporcionar.
Não ando pela rua pensando que tenho cabelos brancos. Só me lembro disso quando alguém puxa esse papo comigo. Típico de outras grisalhas que chegam pra encorajar quem também deixou as tintas de lado. Agora que meu cabelo está todo grisalho, não escuto mais aqueles comentários bem intencionados de quem quer me avisar que chegou a hora de retocar a raiz. Daqueles que vinham com a grande solução para o mistério: “já sei, tu tem cabelo branco porque é muito estressada!”. Afinal, essa tal de genética é uma descoberta recente e ainda pouco conhecida na comunidade não científica.
Antes, “é que cabelo branco envelhece tanto…”. Agora, “queria tanto que a minha mãe assumisse os brancos também”. Aproximadamente 99,9% dos elogios que recebo por aí são de outras mulheres. É unanimidade. Fica aí a sugestão de luta para 2023 para quem se relaciona com homens e vai ter cabelo branco um dia.
O fardo de acabar chamando atenção pelo cabelo grisalho foi um dos motivos que me fez demorar tanto pra assumir os brancos. Todas as minhas últimas escolhas de vida foram pensadas com o objetivo de passar despercebida. Nada de chamar atenção. Estilo de roupa basicão, o mesmo corte de cabelo, segunda profissão morna, a armação de óculos sempre parecida. Tudo em vão.
Não adianta nada se você é uma mulher de cabelo branco com menos de 80 anos. Faço esse esforço por uma boa causa, sendo a causa não ter mais a obrigação de retocar a raiz em intervalos cada vez menores.
Ver uma mulher de cabelos brancos ainda assusta. Ver uma mulher deixando os cabelos brancos crescerem assusta mais ainda. A pior parte do processo é o medo de ser arrastada para o salão de beleza mais próximo, amarrada na cadeira enquanto alguém faz a misturinha da tinta de farmácia e se prepara para dizimar os fios brancos.
Talvez a pior parte seja receber um olhar de quem está louco de vontade de te convencer a pintar novamente o cabelo e te arrastar a um salão. Ou talvez o pior seja quando você mesma se olha assim.
A forma que eu encontrei de evitar as recaídas foi acompanhar perfis nas redes sociais de mulheres de todas as idades com cabelos brancos. O submundo das grisalhas online é caracterizado por fotos produzidas de mulheres quase sempre com maquiagem pesada e acompanhadas de legendas inspiradoras. Não desista! Seus cabelos brancos são lindos! Seja confiante. Existe mais de uma forma de ser, de se comportar e de envelhecer. Confie nos seus instintos. Continue se regando, você (e seus cabelos brancos) estão crescendo.
Dá até pra deixar a ironia de lado e comemorar cada vez que alguém finalmente consegue deixar o cabelo crescer. A conquista de se tornar completamente grisalha. Nada como uma boa mensagem de motivação pra ir mudando aos poucos a ideia de que ter um fio de cabelo branco rebelde é a mesma coisa que enfiar o pé na cova.
Hoje estou com 31 anos e gosto dos meus cabelos brancos. Dependendo da rebeldia do meu cabelo, fico menos ou mais grisalha. Se prendo o cabelo, os brancos se escondem. A maioria dos meus fios ainda é castanha. O ser grisalha já está tão consolidado como parte de mim que o tema ‘ter ou não ter cabelos brancos’ perdeu sua força. Pensei tanto sobre isso nos últimos anos. E agora não tenho mais o que pensar. É um fato. Sou grisalha. Tenho um shampoo cor de tiquira no banheiro pra não amarelar os fios. Não pretendo voltar a pintar. Tenho tempo pra acompanhar os meus cabelos ficando cada vez mais brancos.
Bem antes de assumir os brancos, quando eu era só vontade, costumava reparar numa moça grisalha que ficava no ponto de ônibus do outro lado da Avenida Paulista enquanto esperava a linha que me levava ao trabalho. Ela ainda estava deixando crescer. Mudei de trabalho e de cidade antes que ela acabasse a transição. Espero que não tenha voltado a pintar. Trabalho em casa, não pego mais ônibus no mesmo horário. Me falta uma atividade recorrente pra ser a moça do cabelo branco de alguém.
outras doses
- A foto no início do e-mail é da fotógrafa Elinor Carucci para uma matéria do New York Times: The Unexpected Beauty of Covid Hair, sobre a horda de mulheres que assumiram os brancos durante o confinamento da pandemia.
- No ano passado fiz um minizine contando como a minha percepção sobre ter cabelos brancos foi mudando ao longo do tempo: Fios brancos.
- Um vídeo de Christian Assunção sobre A palavra que resta (Stênio Gardel), a minha primeira leitura do ano.
- Dois textos sobre passar o fim de ano em cidades no interior do Paraná: Encontrando conhecidos na porta do cemitério e Cheiro de manga podre.
Acabo de descobrir sua news e, olha, quantas semelhanças. Primeiro a questão da estabilidade da vida, do emprego, enfim; agora, os grisalhos, que aqui também voltaram à cabeça (quer dizer, eles estavam aqui, eu é que não os deixava aparecer), crescidos durante a pandemia. A primeira vez que deixei os bonitos à vista eu conviva muitíssimo socialmente - família, trabalho, colegas. Tinha um colega - ele próprio grisalho - que adorava me "avisar" quando eu precisava pintar. Embora eu me considere alguém com uma dose razoável de autoestima para essas questões específicas, me enchia o saco o papinho e as "justificativas" que eu precisava dar, as conversas que surgiam por conta do cabelo. Pois a pandemia foi o momento em que esse papo todo deixou de ser questão. Quer dizer, mentira, eu tenho um canal no Youtube, tô sempre na internet, e teve até cabeleireiro me dizendo que A RAIZ TAVA GRITANDO hahaha mas, como de costume, caguei. E agora, grisalha, não é mais tão frequentemente assunto. A alegria está em não precisar pintar nada, em não me sentir "devendo" nada aos outros. Caguei. É uma maravilha. Um brinde aos fios que vêm como tem que vir. Bom final de semana!
não sei nada sobre o mundo instagramático dos brancos, mas bateu curiosidade. adoro o jeito que tu desenrola as coisas no texto e me deixa curiosa com mundos que mal conheço. é de uma honestidade delicada, uma ternura profunda ❤️ gosto muito.