Salão de bairro
#21 -- um horário marcado para cortar o cabelo no final do expediente; o corte de sempre; e a princesa Diana
Um salão de bairro deve seguir pelo menos três regras para não ser confundido com um salão de shopping, um salão modernoso ou, no pior dos casos, a barbearia que vende cerveja artesanal.
1. O ponto precisa ser num bairro residencial. Se ficar perto da padaria e da costureira, melhor ainda.
2. A decoração não pode fugir das paredes claras, cadeiras pretas, fotos gigantescas de mulheres com penteados que estavam na moda cinco anos atrás, uma televisão não muito nova, não muito velha.
3. O nome na placa não é importante. Quando você fala que está indo “ao salão”, todo mundo tem que saber para qual salão você está indo sem dar maiores detalhes.
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Eu, pelo menos, nunca soube o nome do salão de Roberto. Não se engane, Roberto não era o dono do salão de beleza, mas o cabeleireiro popular.
- Ah, não tem horário pra cortar cabelo com Roberto? Então amanhã eu volto.
Não existia essa moleza de horário marcado. O atendimento acontecia apenas por ordem de chegada, e a espera era requisito obrigatório para a cliente conquistar a chance de ser atendida no salão.
No máximo, dava pra dizer que ia dar uma saída rápida pra resolver uma coisinha e logo voltava. Nesses casos, contar para todos os presentes no estabelecimento o que você iria fazer na rua e onde iria era essencial para manter o lugar na fila de atendimento. Sem chá de cadeira, você perdia a sua vez.
Eu me sentia confortável no salão. Na fila para cortar o cabelo, sentada na cadeira em frente ao espelho me despedindo de alguns centímetros de cabelo e, por fim, esperando mamãe terminar de fazer escova pra poder ir embora.
Até dava pra ir andando pra casa. Mas, de noite, as ruas vazias e com pouca iluminação pública do bairro eram o cenário das primeiras vezes em que eu sentia medo de que algo pudesse acontecesse comigo no caminho pra casa. Quando decidia fazer o trajeto a pé, a previsão de chuva era uma benção, e segurava com força a sombrinha que eu carregava no inverno.
Se não havia pressa, e na adolescência pressa é um sentimento raro, o melhor era esperar a carona de mamãe mesmo.
Confiava o meu cabelo nas mãos de Roberto ainda que ele sempre cortasse três dedos a mais do que eu pedia. A nossa tradição mandava que eu não poderia levantar da cadeira sem soltar a minha frase dramática: Roberto, eu fiquei CA-RE-CA. Ele sempre dava uma risadinha. Gosto de pensar que ele cortava meu cabelo desde que eu era uma criança pequena em São Luís (mãe, não me corrija) e que continuou cortando meu cabelo em algumas visitas de férias, quando já tinha ido embora.
Foi Roberto a primeira pessoa que pintou o meu cabelo quando decidi esconder os cabelos brancos que se multiplicavam aos vinte e poucos anos. Os fios ficaram assustados com a mudança, e a tinta deixou uma mancha mais clara, bem na moldura do rosto. Nada seria capaz de atingir a estabilidade da minha relação com Roberto. Uma mancha de tintura não era nada perto de todo o nosso passado: desde a franja reta e volumosa com o corte chanel da infância até a cumplicidade na hora de fazer as pontas pintadas de vermelho da adolescência.
Parei de esperar as férias para cortar meu cabelo em São Luís depois que Roberto abandonou o salão de bairro e foi trabalhar numa dessas boutiques de madame, com luzes ao redor dos espelhos num estilo camarim-cenário-perfeito-para-as-redes-sociais. Entrei lá uma vez pra nunca mais. Roberto era só mais um entre os diversos Robertos garimpados de outros salões de bairro da cidade. Eu e Roberto acuados, mais calados que de costume, sem a piadinha sobre ter ficado careca depois do corte. Só acompanho as notícias que chegam nos telefonemas com mamãe. Fui pintar o cabelo e Roberto perguntou por ti.
Na sexta-feira passada, marquei um horário no salão do meu bairro atual, em Curitiba, pra ver se já dava pra tirar os resquícios da coloração castanho-natural-número-400 que venho deixando crescer desde o início da pandemia. Já tinha cortado o cabelo com Osmar uma vez. De cara, ele ganhou pontos quando não questionou a minha decisão de assumir o grisalho.
Entrei no salão vazio (as manicures já tinham ido embora), me acomodei na cadeira, reparei no protocolo de borrifar álcool em gel nos pentes e nas escovas antes do uso, tirei os óculos e fiquei tranquila à espera do meu corte de cabelo preferido: aquele que te faz mudar tão pouco a ponto de nem a sua namorada reparar que tem algo diferente em ti. Contei da minha vontade de cortar o cabelo bem curtinho, e passamos alguns minutos vendo referências de cortes curtos dos anos noventa. Todas as mulheres das imagens em preto e branco pareciam a princesa Diana.
outras doses
O pudim carioca de Gabriela Couth -- a internet é bela quando uma newsletter reaparece com uma frase dessas: “No meu aniversário de 32 anos eu estava em Londres. Foi a minha primeira viagem internacional a trabalho, e meia noite eu estava na banheira de um hotel cinco estrelas, celebrando comigo.”
REFRESCOS por paula gomes e mya pacioni - #30 Casa de Vó -- “a casa da minha vó sempre se manteve em relativa ordem. o grande problema estava dentro do armário do quarto.” A vó de vocês também tem um armário desses?
em outras palavras de Marcela Monteiro: término, até logo, adeus -- é possível cuidar do fim com a mesma ternura do começo? (sobre brindar um término e guarda compartilhada de cachorro)
Também cortava com Roberto desde criança até início da fase adulta! Nostálgico!
Que delícia de texto! Me fez lembrar do salão do meu bairro, bem parecido. Até o Roberto, que no caso, era o Pedro.