Corpo e espaço
#45 -- mãos sujas de tinta, mudanças e um quase atropelamento (não necessariamente nessa ordem)
1
Virei o pé na rua, saindo do trabalho. Foi logo na esquina do prédio. Andava confiante. Senti a dor do pé dobrando. Tratei de me apoiar num poste. Larguei a mochila no chão e comecei a xingar em voz alta. Veio uma mulher oferecendo ajuda. Devia ter acabado de sair do serviço, como eu. Em qual andar será que ela trabalha? Dispensei a ajuda. Dava pra ir caminhando até em casa. E fui. Com raiva. Frustrada. Na primeira virada de pé (não chegou a ser uma torção), me senti no corpo da minha irmã mais velha. Sou a irmã com defeito na mandíbula, não na articulação dos membros inferiores. Torcer o pé, fazer compressa no tornozelo, tudo isso é com ela.
2
De frente para o espelho, penteio o cabelo antes de ir trabalhar. Ondas se formam nos fios, os mesmos ondulados do cabelo da minha mãe. O meu cabelo costuma ser mais liso. Não sei de onde vieram essas ondas. Ou melhor, não sei por que vieram agora. Se passo o pente e elas não se desfazem, fica mais fácil enxergar as semelhanças entre a gente. Impossível não enxergar. Um flagra recente: entrei em transe nas horas de trabalho. Encarei o serviço como distração para os meus pensamentos. Me pergunto se ela ainda sente isso depois de trabalhar tanto tempo no mesmo lugar. Mamãe dirigiu até a zona industrial da cidade por muitos anos, indo e voltando do bairro residencial onde ficava a nossa casa com um pinheiro no jardim da frente. Do que ela estaria escapando? Do que eu estou escapando quando entro nesse transe?
3
A última noite bem dormida foi no dia da mudança de casa. Numerei as 26 caixas transferidas de uma casa à outra. Fora os móveis, as malas e os gatos. O processo da mudança foi um grande graças a deus/deus nos acuda. De uma quitinete para um apartamento de dois quartos. Não sei como escrever sobre a saída de um lugar tão desconfortável e, ao mesmo tempo, onde vivi momentos significativos. Não soube como me despedir. Sobrevivi ao isolamento num espaço pequeno, apertado. Lá peguei Covid, ainda morava lá quando virei o pé pela primeira vez, lá aprendi a viver em duas, a fazer parte de um casal. Comecei a aprender, pelo menos. Nos primeiros dias do novo apartamento, ainda ficamos sempre nos mesmos cômodos, juntas. São tantas paredes.
4
Voltei ao trabalho presencial desde o final de abril. Logo me acostumei. Sem a opção de trabalhar de casa, o único jeito era me acostumar mesmo. O que não esperava era me tornar uma pessoa tão conversadeira. Compartilhar atualizações sobre a mudança (a geladeira não passou da porta da cozinha), comentar as notícias locais (mais de 900 passageiros confinados no trem turístico até a cidade de Morretes depois da chuva do ciclone!), já chegar contando que quase fui atropelada um dia desses. No trabalho antigo, falava para quebrar o silêncio incômodo que aparecia nos nossos poucos encontros. Ninguém aparecia com uma anedota, uma fofoca do prédio, um comentário sobre a novela da vez. Falar, falar qualquer coisa, era inevitável. Alguém tinha que puxar um assunto. Agora é diferente. Começo a falar quando tenho vontade. Se tenho vontade. Não se trata mais de um falar a esmo.
5
Num sábado à tarde, saí do portão do prédio novo e fui atropelada por um ciclista em alta velocidade. Quase atropelada. Na calçada. Meu andar foi interrompido, fui segurada na altura da barriga. Só meus braços seguiram o caminho programado e receberam o impacto do cano da bicicleta. O cara nem olhou para trás. O machucado foi leve. Só um susto. Mais uma possibilidade, uma nova preocupação para quem gosta de imaginar o pior que pode me acontecer na rua. Depois lembrei. Uma vez, voltando do trabalho, passou perto de mim um ciclista pedalando com rapidez. Pensei: se esse homem leva embora minha mochila nem percebo que fui roubada. Era ele mesmo.
6
Não tenho o hábito de fechar canetas. É um bloqueio. As canetas ficam sempre destampadas. A tampa encaixada na parte traseira. A ponta livre. A caneta sempre a postos para uma anotação feita às pressas. Ideias não esperam o tempo do processo de destampar. Uma dessas canetas de ponta fina ficou aberta na mochila, escapuliu do interior da agenda e manchou o tecido azul da bolsa com uma tinta também azul. Nada que afete o visual da mochila. Enfio a mão lá dentro procurando o crachá da firma, uma xuxinha de cabelo ou até mesmo uma caneta aberta e volto com os dedos manchados de azul. Roupa social, crachá no pescoço e as mãos com resíduos de tinta. Como se estivesse mexendo com cores antes de ir fazer pagamentos, como se estivesse escrevendo tanto por esses dias que a mão direita borrasse a tinta recém-impregnada no papel.
7
Passei parte do isolamento convivendo com uma amiga, parte com a minha namorada. Quando voltei a ter compromissos de trabalho no mundo presencial, fazia parte de uma equipe composta apenas de mulheres. A convivência familiar mais próxima foi com a minha mãe e a minha irmã mais velha. A minha avó, do lado maranhense, só teve filhas mulheres. Minhas tias só tiveram filhas mulheres. Cresci sem a memória do meu avô. Na cozinha da casa de vovó, homem só entra se for convidado. Lugar de homem é, no máximo, no terraço da frente. Entre pandemia e lembranças de infância, perdi qualquer referência de já ter convivido num ambiente masculino. No computador à frente, veio sentar um colega de trabalho. Homem. Ajustei as telas da mesa para ter o mínimo de contato visual.
8
Na última consulta de rotina com a dentista especializada em dor no maxilar, ela estava sem máscara. Digo, sem máscara quando não estava me examinando. Estranhei. Comecei o tratamento durante a pandemia, eu só tirava a máscara quando ela precisava verificar o estado dos meus dentes, da minha mordida. O consultório ficava numa clínica de otorrinos. Esperava a consulta ao lado de pacientes tossindo e crianças chorando com dor no ouvido. Ela continuou usando máscaras cirúrgicas nas consultas. Agora, atende num hospital de cirurgia plástica. Quase não vejo outros pacientes. Sem a máscara, não a reconheço. Não parece a dentista que se preocupa com o meu nível de estresse no trabalho para entender o meu quadro de piora ou melhora na tensão muscular. Não parece a mesma pessoa. É outra. Não teria intimidade para perguntar a ela, sem máscara, se viu o filme da Barbie e reparou no trecho sobre mulheres com dor no maxilar no meio do discursinho da America Ferrera. Saí do consultório cabisbaixa. Se me distraio de mim, deixo os cuidados de lado, o desconforto volta. O desconforto de falar, de comer, de sorrir. Não me reconheço.
mais doses
Eu jamais me demoraria em espaços em que as pessoas passassem seus dias falando sobre Elon Musk: impressões de babi carneiro sobre seus seis meses longe do twitter. Aproveito para divulgar a minha conta no blue sky: @luhsmile.
Antes, acompanhava a newsletter Andanças pra pegar umas dicas de cinema. Agora fico besta com os comentários que a Luisa faz a partir de filmes que provavelmente nunca vou ver: Andar pela cidade nunca é somente um exercício físico.
Uma mulher no mato: Carol Bensimon me fazendo pensar ainda nas leituras de Diorama e Escute as feras. No fim do ano passado, reuni as minhas impressões a partir desses dois livros sobre animais.
A nova temporada da Anna Vitória na news No Recreio: Histórias em que nada acontece e Escrever para lembrar.
adoro sua escrita, Luisa. Ainda estou em home office (híbrido 1x/ semana) e ainda estranho o ambiente de trabalho. Depois de muitos anos, temos um homem na sala do escritório, ficamos sempre de costas, mas ainda há um certo incômodo rsrsrsrs...
Essa edição tá simplesmente fabulosa! Um beijo, Luisa!