Agenda perdida em dezembro
#63 -- uma carta sobre não deixar que o desconhecido se torne maior que nós
Curitiba, 29 de dezembro de 2024
Você me pergunta se já vivi pelo menos uma vez na vida a experiência de mudar para um lugar completamente desconhecido. Se já tive minha vida transportada para um outro lugar, se precisei reaprender a fazer tudo ali, nesse novo lugar.
Não é bem uma pergunta direcionada a mim. Eu que vi a conversa se formando na minha cabeça quando você começou a falar sobre ter saído de Brasília a Goiânia. E a minha resposta é sim. Uma, duas, três, quatro vezes. A experiência que eu não tenho, e nunca vou ter, é a de viver a vida inteira no mesmo lugar.
Quando chego numa cidade nova, passo uns bons meses identificando as linhas de ônibus pelos códigos, sejam números, letras ou os dois. Leva um tempo para que eu me sinta familiar dos nomes dos bairros e dos terminais de ônibus.
Aqui em Curitiba, demorei semanas para identificar que algumas portas eram preferenciais para embarque e outras para o desembarque dos passageiros nos ônibus do sistema BRT. Lá em Florianópolis, não consegui aprender quando pegar o sentido norte ou sul das linhas que circulavam entre o centro da cidade e a região da universidade.
Dá pra notar que não tenho facilidade de desbravar o sistema de transporte público de capitais. Insisto mesmo assim.
No bairro da minha infância, em São Luís, eu morava perto do ponto final da linha Recanto dos Vinhais > Terminal da Cohama. Motoristas e cobradores faziam uma pausa na praça. Os veículos vermelhos estacionados de portas abertas eram um convite para que eu entrasse e pudesse ir para qualquer lugar do mundo. Mesmo que tivesse saído de casa só dar uma passadinha no mercado na frente do ponto. Como se um ônibus urbano fosse me tirar dali.
Só em São Paulo fui ter essa experiência de passar tanto tempo do meu dia no transporte público. Nas cidades menores, consegui morar perto de onde quer que eu precisasse ir. São Paulo não tinha jeito. Eram horas e horas de ônibus combinados com percursos de metrô e caminhadas antes de o sol nascer. Não fiquei lá o suficiente para montar um bom mapa mental com as principais avenidas e viadutos, nem sabia os melhores caminhos. Fui engolida pela cidade. E expulsa.
Agora, em Curitiba, voltei a morar na região central depois de algum tempo morando num bairro que me forçava a pegar ônibus para fazer qualquer coisinha. E o centro é um lugar onde se anda a pé. Eu gosto de resolver minha vida caminhando, sem precisar entrar num ônibus, num carro. Mas isso também tem um efeito negativo.
Não dá vontade de sair do centro. E aí eu sempre tenho a mesma crise: estou morando em Curitiba ou apenas no centro de Curitiba? Faz sentido isso de não se movimentar de verdade pela cidade? Se não me movimento isso quer dizer que realmente não gosto de viver aqui? Como escrever sobre uma cidade de que não gostamos tanto? Não estou deixando outra cidade me engolir?
A crise piorou neste final de ano. Não tive recesso algum, não pude sair da cidade. Mas poderia em ao menos um dia ter saído do centro. Esse centro que está abarrotado de rotina. Só consigo ver meu trajeto ao trabalho, o rumo do supermercado, a rua por onde sempre vou apressada para chegar a tempo do pilates duas vezes na semana. Engolida.
Certa vez almocei com uma colega de um antigo emprego. Eu trabalhava de casa e ia ao escritório apenas quando necessário. Conseguia chegar em meia hora se pagasse duas passagens de ônibus, e nessa época eu tinha saldo sobrando no cartão de transporte. Ela trabalhava presencialmente todos os dias, mesmo com a opção de teletrabalho, e passava mais ou menos três horas no trajeto de ida e volta.
Perguntei o que ela fazia durante esse tempo. A gente não tinha intimidade. Era uma tentativa de descobrir algo em comum, um tipo de música que ela gostasse, uma série que ela assistia, se acompanhava podcasts, um vício em rede social que fosse. Se meditava, se ficava xingando mentalmente os clientes que não mandavam a documentação certa, se procurava fuscas azuis na rua, se planejava receitas para fazer depois. E nada. Ou não se abriu comigo ou, de fato, não fazia nada. Horas e horas passando pelos mesmos lugares todos os dias sem fazer nada. Apenas indo e voltando. Isso já tem dois ou três anos. É uma história que me assusta. O medo de apenas estar indo e voltando.
Outro dia, já no meio de dezembro, eu voltei do horário de almoço e, no serviço, percebi que tinha deixado cair minha agenda no percurso. Refiz todos meus passos, procurando vestígios dos papeis que eu carregava, uma página rasgada, qualquer coisa. Parei para olhar dentro de cada lixeira do caminho. Vai que alguém tinha pensado que era lixo.
Não encontrei a agenda perdida. Estava tranquila por saber que não anoto senhas ou endereços na agenda. Decepcionada porque tinha feito nela alguns registros pessoais, como os livros lidos e séries vistas no ano de 2024. Mas não tinha o que fazer. Sempre brinco que as coisas, quando não querem ser encontradas, não são encontradas. Voltei a trabalhar, resignada.
Horas depois, percebo que o cursor do mouse está travando e, enfim, olho para a minha mesa de trabalho. Vejo que a agenda está ali, de cabeça pra baixo, servindo como apoio para o deslizar do mouse. Uma capa preta sob o mouse. Apenas indo e voltando. Sem deixar a rotina me vencer, nem a cidade me engolir.
***
Essa é uma carta para Lethycia Dias, da newsletter
, resultado da minha participação na troca de cartas/amigo secreto do pessoal que escrever newsletters.A minha resposta foi elaborada com base na edição Mapa mental - Uma mulher que escreve #98 e nos demais textos publicados neste ano que também falam sobre percursos feitos de ônibus e deslocamentos pela cidade.
Não consigo pensar em ônibus e nas decisões que tomamos na vida sem me lembrar do filme The Graduate (A primeira noite de um homem), com a cena famosa dos personagens que, em fuga, entram no primeiro ônibus que passa pela rua. Seguidos pela percepção das consequências de suas escolhas. Por isso, selecionei essa foto para acompanhar a carta.
Deixo, ainda, a recomendação de um outro texto da Lethycia que nem consegui responder de tanto que me impactou. Não sei como andam as outras cidades, mas aqui em Curitiba aconteceram muitos acidentes envolvendo ônibus urbanos nos últimos meses. É importante saber o que acontece com quem passa pela situação.
“Quase todos os dias, alguma coisa assim acontece nessa rodovia que é o meu caminho para tudo. São poucas as linhas de ônibus que não a atravessam, que cortam por dentro dos bairros em direção ao centro da cidade. Carros, motos, caminhões, ônibus… Às vezes se chocam contra o meio-fio, ou um poste, ou outro veículo. Às vezes alguém morre, às vezes as pessoas têm sorte.
Eu tive sorte.”
O que fazer com cacos de vidro - Uma mulher que escreve #96: O dia em que eu estava indo ao trabalho e sofri um acidente de trânsito, ou: encontrei cacos de vidro na minha roupa
***
a minha carta eu já recebi e foi escrita pela Lívia Reis, da newsletter
, num texto servido em doses <3.
Oi, Luisa! Li a sua carta com curiosidade por saber que você escolheu logo o assunto de mudança de cidade pra comentar. Foi uma edição difícil de escrever, e sobre o qual sempre tenho dificuldade de falar, porque quando a gente diz que vem de outro lugar, as pessoas sempre perguntam o que estamos acha de onde estamos vivendo agora, e elas não lidam muito bem quando a gente diz que não gosta! É uma experiência mais fácil de compartilhar com quem já viveu em várias cidades mesmo, e fico feliz de ter encontrado uma leitora como você pra essa edição!
Gostei muito dos seus comentários e me identifico muito com o horror de passar tanto tempo no transporte público sem fazer nada. Estou sempre me ocupando com alguma coisa: lendo um livro, ouvindo podcast ou observando atentamente.
Sua história da agenda perdida me lembra que numa das primeiras semanas no meu trabalho, perdi uma toalhinha que levava para todo lugar, para secar bancos de ônibus molhados ou sentar em cima quando o assento está quente. Acabei esquecendo no ônibus, e assim como você, fiquei procurando pelo caminho. Infelizmente, não achei.
aqui a experiência é de sair do interior pra "cidade grande", com todo aquele deslumbramento de adolescente querendo conhecer o mundo e, lógico, o sonho de morar no centro. e tem o lado que é ótimo, estar perto das coisas, fazer tudo a pé, etc. mas o centro de Curitiba é sufocante mesmo. (talvez todo centro seja?). o caos do dias úteis versus o tédio dos domingos (com seu vazio mais vazio do que o domingo nos bairros), as ruas desertas, praticamente nada de comércio aberto, a imensa quantidade de concreto mesmo na "cidade ecológica" hehehe, barulho de ligeirinho entrando às 6h da manhã pela janela de casa. depois de 5 anos eu tava com essa mesma sensação. sufocada, irritada e com hipersensibilidade auditiva. e voltar pro bairro foi a melhor escolha que eu fiz. tem coisa que só o bairro dá pra gente.