Crônica curitibana
#6 -- habitar uma cidade em tempos de confinamento; rodízio de água; caminhadas e uma manifestação
Pela janela de casa, dá pra ver a Linha Verde, uma avenida que nada mais é que um trecho urbano da Rodovia Régis Bittencourt -- início em Quatro Barras (PR), término em Taboão da Serra (SP). Contei pelo menos vinte e três araucárias no meu campo de visão, até fiquei impressionada com a quantidade. O código de área do meu celular é 41. Naquelas semanas mais frias do ano, a temperatura por aqui realmente estava mais baixa em relação a outros lugares.
E o que faz me sentir vivendo na cidade é acompanhar a programação do rodízio de água. Já aconteceu de acabar a água algumas vezes, então é de bom tom prestar atenção pra pelo menos não lavar roupa quando o abastecimento da rua é interrompido. São 60 horas de fornecimento e 36 horas de suspensão. Dois dias e meio com água. Um dia e meio sem água. Para checar a programação no site da companhia de saneamento, eu localizo o meu endereço no mapa me baseando pelos pontos verdes -- os parques da cidade -- até chegar aqui na vizinhança. Estou em Curitiba.
O segundo ano de pandemia começou com minha mudança do centro para um bairro depois de três anos no mesmo endereço. Não estou mais no fuzuê de prédios, nem do lado das melhores lanchonetes de shawarma, nem perto de todos os tipos de agência bancária -- hoje só tenho conta em banco digital, não sei por que estou preocupada com bancos. O frete da entrega ficou mais caro, e essa foi a deixa para pedir menos comida. Morar em bairro também é encontrar menos gente na rua, ter basicamente só uma verduraria perto pra comprar uma cebola, finalmente encontrar uma padaria com pão francês gostoso. Ir ao centro se tornou um passeio de sábado pra resolver pendências, comprar panelas, trocar o copo do liquidificador, comprar um metro de plástico pra forrar o chão e proteger o piso da água que respinga da fonte dos gatos.
Morar fora do centro é ter o sentimento de ficar longe de tudo. De todos os bares que eu não frequentaria nesses tempos de confinamento, das feirinhas que eu não ia ter coragem de passar perto, da sorveteria na praça do gaúcho que eu parei de visitar no meio do processo de experimentar todos os sabores de sorvete. E escrever que estou morando longe do centro é um exagero. Não dá nem 10 minutos de carro, quatro tubos de distância da minha antiga casa se eu pegar o ônibus da canaleta. A questão é que estar trancafiada dentro de um apartamento que não é mais o lugar onde eu forjei toda a minha vida curitibana me faz sentir cada vez mais alheia à vida na cidade.
Eu era aquele tipo de pessoa que fazia tudo a pé, tentando decorar o nome das ruas, reparando em cada loja nova que abria, forçando uma amizade com os donos da lanchonete vegana perto de casa. Sinto falta de ter motivos e de querer sair andando por aí quando as ruas não estavam apinhadas de pessoas sem máscara. Ou quando caminhar sem máscara era a única realidade que a gente conhecia. Se bem que eu morava perto do hospital universitário e vez ou outra via algum provável paciente saindo de lá com uma máscara cirúrgica. Até em março de 2020, quando Curitiba teve índices altos de isolamento, era mais confortável andar pelas ruas vazias do centro apesar da sensação de ser figurante numa cena de filme apocalíptico.
Tive a sensação de estar habitando uma cidade e não apenas a minha própria casa em caminhadas das últimas semanas. A primeira foi no trajeto entre a clínica do exame admissional para um novo emprego – finalmente trabalhando de casa! – e uma livraria ali perto. Nem sei quanto tempo fazia que eu não pisava numa livraria e, ainda assim, a melhor parte foram os 15 minutinhos caminhando em ruas conhecidas. Passei por um carro de bombeiros parado frente a um prédio. Um repórter de televisão fazia uma passagem bem na hora, e eu reduzi a velocidade pra ouvir o que ele estava falando. Os bombeiros foram chamados para retirar uma anaconda de não sei qual andar? Ri sozinha do que eu pensei ter escutado e segui meu caminho.
Depois foi a manifestação do dia 3 de julho, a única que eu tive coragem de ir. Arrumar um trabalho remoto me deixou mais confortável pra encarar uma aglomeração em pleno sábado de folga. A marcha pelas ruas do centro que já fizeram parte da minha rotina só evidenciou como eu sinto falta de um convívio urbano despreocupado. E que eu não tenho ideia de como vai ser reivindicar uma vida curitibana pra mim quando atingirmos níveis aceitáveis de vacinação. Hoje chamaram o pessoal de 38 anos pra primeira dose. Faço 30 daqui a duas semanas.
Curitiba foi uma cidade resistente no começo. O pesadelo do corona começou quando eu mais estava me sentindo em casa. Até o reencontro com a vida em sociedade, não sei que tipo de pessoa eu vou ser, como serão os outros habitantes, como a cidade vai estar. O depois é intimidante.
outras doses
.flows magazine -- desde a semana passada tô pensando no que a Luci escreveu sobre não estar pronta para voltar ao normal. Talvez seja melhor não ler caso você precise frequentar banheiros de shopping.
Uma cartinha de... Sofia Soter -- Sofia voltou a enviar cartinhas semirregulares sobre o que tem pensado, lido, visto e ouvido. Já chegaram duas edições (O retorno e Livros e cerejeiras).
Cartinha da Laura -- quem deixa ir tem pra sempre: "Muito se fala sobre a importância de seguir seus sonhos e ter perseverança, seja no mundo da auto-ajuda barata, seja quando incentivamos amigos. Isso sem dúvidas é necessário, porém não podemos ignorar o fato de que, às vezes, o melhor a se fazer é mesmo desistir."
Tá todo mundo tentando -- o tema do boletim de ontem de Gaía Passarelli foi justamente o caminhar. Ler sobre a relação dela com a cidade de São Paulo me ajudou a destravar o texto da semana.
Quando mudei de bairro pela primeira vez foi da Vila Madalena para Moema. Eu tinha 14 anos. Eram tempos pré-internet ou telefone celular, e perdi todas as referências, inclusive os amigos da escola. Precisei criar outras, e foi caminhando pela área nova que me entendi. Saia de casa sem destino certo, só para andar. Essas andanças acabaram me levando para outras partes da cidade: Santa Cecília, República, Consolação. Faz tempo, mas o apego por caminhar nunca cessou. Em diferentes fases, casas, viagens, sempre andei muito.
É sábado de tarde e aqui estou eu enviando o boletim que era pra ter saído na quinta-feira. Essa foi uma semana em que me senti completamente sem criatividade, principalmente nas noites que tinha reservado pra sentar e escrever. Às vezes o melhor a se fazer é desistir. Ou deixar pra depois. Foi dando uma olhada na leva de newsletters que chegam às sextas que pude absorver um pouco de inspiração e parar pra terminar o texto sobre Curitiba.
Essa ideia de ter um dia fixo e um horário ideal (pela manhã) para enviar os e-mails é porque, assim, eu tenho mais chances de ser lida. Só que nos últimos dias fiquei em crise com essa rigidez. Todo o meu propósito ao escrever na internet é que não estou aqui para pensar em métricas e divulgação em redes sociais. Se o texto não tá pronto na quarta à noite, beleza, talvez eu termine na quinta pra enviar na sexta. Se isso também não der certo, tem o sábado. No máximo, o domingo. Enviar depois da segunda já seria um descabimento, preciso colocar um pouco de ordem na casa. Aí deixo pra enviar na quinta-feira seguinte. Combinado?
Toda essa reflexão sobre o que significa habitar uma cidade quando eu passo dias sem sair de casa também me fez pensar na ironia que existe em ter começado a escrever crônicas nesse contexto. O melhor tema de crônicas é a cidade, e eu aqui com medo de sair na rua, veja o absurdo. Também é importante manter pra mim algum tipo de registro desses tempos e me divertir no processo. Gosto de me dedicar a textos sem pré-requisito, basta abrir o e-mail e ler rapidinho enquanto a água do café ferve, não precisa de conhecimento prévio. E é por esses motivos que insisto na crônica. Em algum momento vocês terão que ler, inclusive, um relato sobre a vida de uma gateira de primeira viagem.