Um prato de salgadinhos sem carne
#1 -- trabalhar presencialmente sem afrouxar a PFF2; frituras murchas versus coronavírus
É aniversário de um figurão da firma e, desde cedo, escuto rumores sobre a possibilidade de ter comida de festa para os funcionários. Eu finjo que nem estou prestando atenção na conversa, concentrada na planilha. Depois do almoço, vem a confirmação. Vai ter bolo, mas cada pessoa deve descer até a cozinha e buscar seu pedaço pra comer na mesa de trabalho. Ufa, é só não buscar e continuar com a máscara PFF2 ajustada ao rosto. Ninguém nem vai ser obrigado a cantar parabéns.
Todo o setor desce ao mesmo tempo e eu continuo trabalhando. O problema é que cada colega me fala a mesma coisa: a Vanessa do Financeiro separou um prato de salgadinhos sem carne porque lembrou que sou vegetariana. Quando recebo o recado pela quarta vez, vejo que não tenho escapatória. Tive que descer com medo de que a Vanessa do Financeiro fosse começar a ligar para todos os ramais do setor, perguntando: ué, não vem buscar seus salgadinhos? Ou pior, que viesse até mim com o prato de salgadinhos na mão. Como é que eu ia fazer essa desfeita?
Na porta da cozinha, eu era esperada como uma convidada de honra. Recebi informações precisas sobre os sabores dos salgadinhos -- a bolinha era de queijo; o risole, de palmito -- e só deu pra recusar o pedaço de bolo. Aparentemente, consegui emplacar a imagem de pessoa-que-não-come-carne no escritório. O problema é que a imagem que eu queria passar era a de pessoa-que-nunca-tira-a-máscara-em-público.
Então eu voltei para a minha baia e deixei o prato ao lado do teclado. Trabalhei o resto da tarde encarando os salgadinhos. Enquanto o sistema ficava carregando, eu olhava para as bolinhas de queijo e lembrava que nem tinha almoçado direito. Enquanto o Excel travava, eu olhava para os risoles de palmito e pensava numa forma de levar os salgados comigo e comer em algum canto tranquilo, antes de chegar ao ponto de ônibus.
Trabalhar fora todos os dias, sentindo falta da segurança do confinamento, é ter que criar mecanismos de defesa que não necessariamente vão fazer sentido. Se as pessoas que trabalham contigo passam a jornada inteira bebendo café pra não usar a máscara, basta ficar sem óculos pra nem saber se tem um nariz suspeito à mostra. Se por acaso você der bobeira e flagrar um rosto nu que você nem deveria estar vendo pra começo de conversa, basta fazer uma careta de desgosto, que provavelmente nem será percebida já que você, sim, está de máscara.
Outras táticas podem até fazer mais sentido, como almoçar fora do escritório, ao ar livre, ou fugir das aglomerações dentro do ônibus. Mas isso não tem a mesma emoção. Caso você não seja míope, favor elaborar suas próprias estratégias de sobrevivência.
Antes de perder de vez o home office, pensei que começar a trampar presencialmente no final de 2020 teria um viés misterioso. Todos os meus colegas ficariam com parte da fisionomia oculta como a Feiticeira que dançava de biquíni e máscara na TV do início dos anos 2000. A verdade é que nem eu consegui preservar totalmente a minha identidade, quando tive que mostrar o rosto a um ex-chefe, já que ele queria me conhecer. Não tive coragem de dizer que eu era igual a foto do currículo.Logo aprendi que só respirando fundo -- ou às vezes nem respirando -- pra resistir à vontade de forçar um superior a usar a máscara corretamente.
Hoje, trabalhando num serviço essencial que poderia ser feito do desconforto da minha casa -- já que eu não tive motivo pra montar um escritório decente --, eu passo dez horas e meia do meu dia usando máscara, a oportunidade perfeita para a proliferação da acne tardia. Na rua, o meu único respiro é no horário de almoço.
Chego na praça que escolhi como refeitório depois de caminhar por mais ou menos dez minutos, momento que aproveito para responder mensagens de áudio esbaforida, perdendo o fôlego na caminhada por causa da PFF2. No verão, às vezes o tempo tava tão quente que eu até usava máscara de pano em ambientes abertos. Agora que já estamos perto do inverno, aproveito também a proteção da Peça Facial Filtrante contra o frio.
Ao longo da tarde, fui perdendo a vontade de comer os salgadinhos. Não tinha como levar o pratinho comigo sem que eu carregasse ele na mão, à mercê do dos olhares curiosos dos meus colegas de trabalho. Eu teria que descer as escadas segurando o pratinho com todo o cuidado do mundo, entrar em outro prédio, subir outras escadas, bater meu ponto, descer, sair do escritório, passar pela bagunça da obra da prefeitura na esquina e encontrar um lugar relativamente vazio para comer as bolinhas de queijo e os risoles de palmito antes que meu ônibus chegasse.
Fui tomada por uma raiva desproporcional ao ter que fazer todo um planejamento para comer seis unidades de fritura já murchas. Não comer os salgadinhos foi o meu grande ato de resistência contra a disseminação da Covid-19. Antes de ir embora, ofereci os salgados para um colega que ficaria trabalhando até mais tarde. Pelo menos ele tiraria a máscara pra comer quando eu já tivesse ido embora.
outras doses
[newsletter] Gaía Passarelli -- ter uma mesa de trabalho: "Herdei do meu avô algumas coisas, mas a mais vistosa é uma mesa de madeira."
[blog] Lidyanne Aquino -- No meio da viagem no tempo tinha um coelho esquisito: reflexões sobre rever os filmes Donnie Darko e De repente 30.
[newsletter] Lorena Pimentel -- a irmandade da calça viajante - fantásticos erros #36 - infelizmente, os textos enviados pela Lorena não ficam disponíveis no site pra ler depois. Na edição mais recente, ela narrou uma aventura a partir de um cupom fiscal encontrado no bolso de uma calça comprada em brechó. O que você estava fazendo no dia 15/09/2015? Vou deixar aqui um trecho pra dar aquele gostinho. Recomendo assinar para receber as próximas newsletters.
"Quando eu fui usar a calça, eu coloquei a mão no bolso na hora que fui comprar remédios pros problemas psicológicos na farmácia e achei que fosse uma nota fiscal minha. Na hora que cheguei em casa, percebi que não era, já que era de um McFlurry.
Isso era o de menos, porque na verdade era de um McFlurry comprado no McDonald's de Ipanema em 2015. Pelo que dá pra ver no maps, esse McDonald's é um daqueles direto na calçada de ladrilhos, térreo de um prédio antigo. Poderia ser no Centro ou na Faria Lima, mas é em Ipanema."