para Vanessa
Um livro grifado por outra pessoa é um caminho delimitado no mapa. Seguir a leitura de alguém. Diferente de ler um livro em branco. Começar do zero. Há alguns dias terminei o Constelações - ensaios do corpo, de Sinéad Gleeson (com tradução de Maria Rita Drumond Viana). Li na edição de uma amiga, com 25 marcações sinalizadas com tiras adesivas e inúmeros sublinhados que não me dei o trabalho de contar.
Essa amiga é conhecida por riscar os livros, fazer comentários em certos trechos e grifar sem dó nem piedade. Já me acostumei. Se é importante que a leitura não seja influenciada pela visão dela, melhor nem pegar emprestado.
Parece um absurdo falar de um livro como um objeto em branco. Todas aquelas páginas de escrita, palavras impressas no papel. Sem as anotações dela, de outros ou até mesmo minhas, livros em branco. Não lidos.
“Conheço bem a sensação de ter que implorar e convencer, de provar que sou digna de intervenção médica. Meu corpo não é um ponto de interrogação e a dor não é negociável.” !!
Constelações foi uma recomendação minha quando soube que a escritora tem um diagnóstico de artrite em comum com minha amiga. Como costumo fazer com os livros que me interessam, peguei emprestado logo depois que ela terminou de ler.
Acompanhei todos seus grifos, num sublinhado azul. Percebi quais trechos a deixaram emocionada (havia um coração desenhado na margem), com quais passagens ela mais se identificou (dois pontos de exclamação ao lado dos parágrafos -- exatamente dois).
Páginas seguidas sem uma marcação sequer. Sei bem o que significa aquela ausência. Converso com ela na minha cabeça, digo que também não gostei muito desses mesmos capítulos.
Nossas conversas são permeadas pelo linguajar da doença. O corpo doente tem seu próprio impulso narrativo, diz parte de um grifo da página 157. Quero saber de seus tratamentos, das consultas que tanto demoram a chegar dada a agenda concorrida dos médicos. Presto atenção nela para saber se é melhor mudar de assunto. Se não é melhor distraí-la, deixar a doença de lado por um instante.
Leio os escritos de uma autora irlandesa e é como se estivesse ouvindo a minha amiga, aqui em Curitiba, falar da vida com dor, dos níveis de dor que uma pessoa é capaz de aguentar no dia a dia, das meias de compressão e da dificuldade em encontrar médicos decentes.
“Viver com dor é ter uma vida dispersa, em que todo pensamento fica em segundo plano em relação à fonte daquilo que faz sofrer.” !!
Não li Clarice Lispector o suficiente para saber por que, na abertura do ensaio intitulado “Sobre a natureza atômica dos trimestres”, a expressão ‘biologia-como-destino’ foi circulada a lápis. O nome Clarice anotado na margem esquerda da mesma página. Só assim pra pegar a referência. E, no último capítulo, reparo num simples “credo” ao lado da frase que menciona o biógrafo gringo. Posso vê-la revirando os olhos, bufando de leve, com a ânsia de registrar o desgosto numa só palavra. Credo.
Isso acontece no texto que entrou apenas na edição brasileira, “Eu sei o que é primavera”, com impressões de uma viagem da autora a Florianópolis e ao Rio de Janeiro, em 2018, a partir da leitura de crônicas de Clarice. Me interesso mais pelas impressões de Floripa, da universidade onde estudei anos antes daquela visita estrangeira, do contraste daquele lugar com o resto do país. Ainda não conhecia a minha amiga do livro quando era uma universitária vivendo em Santa Catarina.
Não querendo roubar o protagonismo de Clarice Lispector, mas torço para que ela tenha pensado em mim nesse último ensaio. As circunferências da vida são pequenas, mas os cruzamentos acontecem quando menos esperamos. É a última frase sublinhada do livro.
mais doses
● Nos últimos dias, ficaram comigo esses textos sobre a situação no Rio Grande do Sul: A casa alagada (Julia Dantas), Milonga abaixo de mau tempo (Renata), O amor afogado numa enchete (Vanessa Guedes), Ausência ou: nos ajudem (Priscila Pacheco) e esse trecho de Ana Rüsche em A garganta de Cassandra: enchentes no Rio Grande do Sul:
“Quando se perde a própria casa, o lugar de conforto; ao perder uma vizinhança, um lugar de referência; ao perder uma cidade, o lugar de memória; é preciso se reconstituir como pessoa.”
● Alice Munro faleceu na segunda-feira, 13 de maio, aos 92 anos. Só conheci sua obra depois do Nobel de literatura, mas foi assim que ela entrou pra minha lista de escritoras preferidas. Estou em dúvida se nos próximos dias releio um dos livros que tenho comigo (Felicidade demais e Fugitiva foram os mais cotados) ou se aproveito para ler algo inédito pra mim, como seu livro de estreia (Dance of the happy shades).
Vale ler a homenagem que Margaret Atwood escreveu para a amiga (em inglês), com quem era frequentemente confundida na rua: “I have known Alice ever since; that would be fifty-five years. How could that be? Alice would have something to say about it, as one of her perennial subjects was time.”
Amiga 💗 obrigada por seguir a minha leitura de forma tão bonita
sublinhar, rabiscar, escrever, anotar... livros são nossos confidentes primeiros <3