Toca Raul
#52 -- os sons da vizinhança; e uma amizade platônica com o vizinho do andar de cima
imagem: trecho da hq Isolamento (Helô D’Angelo) sobre histórias de vizinhos.
A primeira estranheza, depois da mudança, foi o silêncio. Deixei a lateral de uma autopista movimentada, impossível de atravessar para o outro lado, e passei para um apartamento voltado para os fundos. No centro da cidade e, mesmo assim, mais calmo. O barulho dos carros e das manifestações que passam pela avenida chegam suavizados. Ainda bem.
Aos poucos, os sons da vizinhança foram se destacando na calmaria. O toque do interfone do porteiro. Um tipo de alarme que avisa que o portão da garagem está aberto. A voz da síndica. O ranger do portão do bicicletário, no térreo. Louvores da igreja ao lado. O burburinho de rezas e lamentações nos cultos de quinta-feira.
E, de um dia para o outro, o choro de um bebê. Estridente e contínuo.Teria chegado direto da maternidade? Será possível? Como identificar o choro de um recém nascido se nunca convivi com um? Eu chegava à noite do trabalho e conseguia ouvir o choro assim que entrava no prédio. Subia as escadas e o volume aumentava. Com o passar dos dias, ficou claro que o bebê e sua mãe estavam no apartamento exatamente acima do meu. A maturidade me fez perceber como era natural pensar na mãe dessa criança. O choro nunca me incomodou como se espera que um vizinho se incomode com os barulhos de outro.
A choradeira foi uma isca para começar a reparar na família de vizinhos. O jovem risada de cavalo. O bebê que chora. A mãe que faz videochamadas com o marido. Uma outra voz de mulher, talvez avó da criança. E um menino com uma dicção ainda em treinamento, dificultando a vida da vizinha fofoqueira do primeiro andar. O que dava pra entender: pedido de “carninha” pra comer no jantar, pedido de pipoca no lanche e um eterno chamado de MÃE MÃE MÃE MÃE MÃE MÃE, sua palavra preferida, pronunciada à perfeição tal como a repetição de TIO TIO TIO TIO TIO TIO ou BEBÊ, BE-BÊÊ, BE-BÊÊÊ, BE-BÊÊÊÊÊÊÊ.
A mãe não ficava pra trás. Nunca descobri seu nome, continuará sendo chamada de mãe. O que mais dava pra ouvir do apartamento vizinho, depois de acalmado o choro da neném, eram os chamados da mãe pelo garoto. Ela respirava fundo e lançava um: RAUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUL.
Raul, vem aqui agora! A ordem seguida de passos apressados de um garoto avançando pelo corredor do andar de cima, ecoando no meu próprio corredor. RAUUUUUUUUUL. Um chamado ao filho, um grito que desafoga uma mãe, um uivo cheio de sentimentos, um desabafo no alongamento das vogais. Parecia tão libertador que virou bordão aqui em casa. Em momentos de agonia, com uma chateação incomodando a cabeça, bastava gritar a plenos pulmões: RAUUUUUUUUUUUUL. Selo de qualidade garantido. (Os berros daqui de casa eram, na prática, gritos sussurrados para evitar confundir a cabeça de uma criança ouvindo vizinhas desconhecidas bradando seu próprio nome. Funciona mesmo assim, baixinho.)
O menino levava muita bronca, é verdade. Também brincava demais. Era frequente estar vivendo a minha vida, lendo um livro sentada no sofá novo, e interromper o que estivesse fazendo para escutar a risada de Raul. Daquelas gargalhadas gostosas de criança. Sem dúvidas, era esse o melhor momento da observação de universo sonoro que praticava do conforto do meu lar. Ele corria, brincava, dava risada, aprontava uma e depois levava uma chamada da mãe: RAUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUL.
Foi assim que desenvolvi uma amizade platônica com o vizinho de cima. Torcia para o destino proporcionar um encontro casual na portaria. Como seria Raul fisicamente? E sua irmã pequena? Que horas saíam para passear? Talvez precisassem de uma vizinha-babá para emergências… Seria estranho comprar um presente de dia das crianças para ele? Não faltaram conjecturas da minha parte. Meses depois, nada de vê-lo entrando ou saindo do prédio. Difícil contar com o destino, hein.
Na véspera de um feriadão, preparada para ouvir o burburinho de Raul vinte e quatro horas por dia, reuni a coragem que faltava. Vesti minha capa de vizinha fofoqueira e perguntei a um dos porteiros sobre o Raul. Mais cedo, tinha visto um garoto subindo a escada do prédio e queria confirmar se ele poderia ser o vizinho de cima. Não era. Naquele mesmo dia, Raul já tinha se mudado com a mãe e a irmã. Coisa de briga na família. Nunca mais escutei a risada do menino, os passos no corredor, o grito da mãe. Estou aqui envolta no silêncio. Escuto a fonte dos gatos (preciso colocar mais água) e um ou outro carro que passa na rua em frente ao prédio. Bem longe daqui.
mais uma dose: o audiolivro da semana 🎧
- Parei tudo que estava fazendo quando vi Jazmina Barrera compartilhando a antologia ‘Canción sin volúmen’ -- Apuntes, historias e ideas sobre salud mental. O ensaio de Jazmina, narrado pela própria autora na versão em audiolivro, é o mais interessante do livro. ‘Acapulco’ fala sobre memórias e a convivência com sua avó materna, que sofria de alzheimer. Dois outros destaques são os contos de Fernanda Trías (Marabunta) e Dolores Reyes (El último vuelo).
- Foi a primeira vez que escutei Jazmina lendo seu texto, depois de ouvir ‘Linea nigra’ e ‘Cuaderno de faros’ narrados por outras pessoas. Até arrepiei.
- A antologia é um original da plataforma Everand (antigo Scribd), que está tentando se promover nessa mudança de marca. Aqui um link direto para a publicação: https://prueba.everand.com/cancionsinvolumen/.
Que crônica mais linda ❤️
Queria passar para te agradecer pela dica da última news, já baixei La encomienda no Kindle e me deliciei com o texto do Margarita Garcia Robayo na Piauí (apesar de achar que ela foi super esnobe com o Brasil). Eu amei a leitura de Linea Nigra, a Jazmina é fera demais, e quando descobri que o marido dela era o Zambra eu fiquei WHAT
Nossa, eu fiquei até triste. Eu penso muito nas pessoas que eu vejo todo dia no ônibus e nunca conversei. Eu sinto falta delas se por algum razão elas param de aparecer, mas nunca tenho coragem de falar com elas. Sou grande adepta de ler no ônibus, e se eu socializar um dia e der certo, depois disso ficarei presa numa obriação de socializar todo dia.