Sobre chave de boca e hashi
#5 -- uma conversa sobre fracassos; preciso de férias da montagem de móveis; confiem nas avaliações dos produtos; protejam suas caçambas
Comprar uma prateleira pela internet. Esperar a encomenda chegar pelo correio. Separar um dia para montar as peças, quem sabe até tomar um vinho. Para depois só aproveitar a praticidade de ter um novo lugar pra organizar os potes de vidro na cozinha. Essa história tinha tudo pra ter um final feliz. Talvez até tenha um final feliz. Só o meio é que foi complicado. Nem a parte de esperar a encomenda é fácil quando você mora num local sem portaria, dependendo de interfones disfuncionais. Ontem mesmo tive que sair correndo pra tentar chegar no portão a tempo de falar com a pessoa que veio buscar o aquecedor defeituoso da minha vizinha, protagonizando a cena ridícula de ver o rapaz indo embora enquanto me dava conta de que havia esquecido a chave da entrada e acenava pelo vidro da porta. Foi triste.
O inventário dos móveis montados por mãos inexperientes nesta casa consiste em um guarda-roupa que tinha todas as avaliações negativas e certeiras (combo de peças faltantes com material frágil e um manual de instruções que não condizia com a realidade); uma cadeira gamer (isso conta?); duas escrivaninhas iguais (a segunda foi mais fácil); e a fatídica prateleira de ferro. Depois disso tudo, eu fiquei em dúvida sobre qual seria a pior opção:(a) montar um móvel; (b) desmontar um móvel; ou (c) remontar um móvel?
( )Opção A– Antes da experiência de montar um móvel em casa, pensava que tinha lá minhas chances de me sair bem na função. Vai que dava certo. A primeira cobaia foi o tal guarda-roupa das avaliações negativas. A falta de habilidade no serviço só prejudicou a montagem, que acabou durando longas semanas. Sim, semanas com portas e pregos e pedaços de gavetas espalhados pela casa. Foram pelo menos dois domingos inteiros de batalha, me lembro bem disso. Hoje o pobre coitado jaz com os pés quebrados, fruto da tentativa de mudar o móvel de lugar. Pelo menos deu certo, isso de mudar de lugar, o apartamento ficou mais ajeitadinho.
( ) Opção B – O sofá daqui de casa sempre foi desproporcional ao tamanho do apartamento e à quantidade de moradores -- duas mulheres; dois gatos. Era um daqueles de canto, com cinco ou seis lugares. Depois da reorganização dos móveis, o sofá ficou empatando o caminho. Mas como se livrar de parte um móvel antigo que realmente não servia pra doação? A resposta veio num dia qualquer em que saí pra comprar pão e reparei na caçamba do prédio em construção na rua de trás. Desmontar (talvez destruir) as partes do sofá que iriam para o descarte foi uma aventura, com o uso de ferramentas especializadas como um martelo improvisado (o cabo de um espeto de kit churrasco) e uma faca de carne (do mesmo kit churrasco). Foi toda uma emoção esperar anoitecer pra deixar as sacolas e caixas de entulho na caçamba alheia. Auge da clandestinidade.
(X) Opção C –Não deve ser tão difícil montar uma prateleira de ferro, né?, pensei inocentemente. A bendita foi montada numa noite de dia de semana. Segui todos os passos do vídeo tutorial em que a mulher parafusava as estantes na maciota, tudo perfeitinho. Na hora de colocar a estante de pé, só decepção. Ela estava completamente torta, desabando pra um dos lados. Já era tarde pra tentar consertar naquela hora, e o jeito foi arrumar os potinhos de tempero e apoiar o micro-ondas do jeito que dava. A prateleira foi se consolidando como um ponto turístico com personalidade dentro de casa, o empenado era um charme. Quem se importa com uma prateleira torta? A fase de negação durou um par de semanas até o momento inevitável: O Grande Domingo Para Desparafusar 48 Parafusos e Colocar Todos Esses Mesmos 48 Parafusos De Volta No Lugar.
Não sei se essa referência que vou usar é comum a todos que passaram pelo processo de tirar a carteira de motorista. Numa das primeiras aulas teóricas, o instrutor mostrou um trecho desenho animado como exemplo negativo do modo de dirigir. Tratava-se do Pateta Raivoso no Trânsito, o cidadão cordial que se transforma em pura agressividade quando coloca as mãos no volante. Naquele domingo ensolarado e frio, percebi que eu era uma Pateta Raivosa da Chave de Boca, cada vez sentindo mais raiva por nem conseguir ter certeza se a tentativa de endireitar a prateleira estava dando certo. Apertando e afrouxando parafusos com a chave, me revoltava porque nem fazia ideia de como resolver o problema. A prateleira melhorou, mas não dá pra cravar que ela ficou totalmente alinhada. Talvez eu prefira conviver com uma prateleira de seis andares que não são perfeitamente paralelos entre si do que ter que desmontar tudo outra vez.
Pensando melhor sobre a minha desilusão como montadora amadora de móveis -- até porque está nos planos vindouros a compra de uma mesa nova pra cozinha -- fiquei me perguntando se essa não seria uma questão de me sentir frustrada por não ser boa em alguma coisa. Em alguma coisa que é tão simples para outras pessoas. Convenhamos, é ridículo encarar uma prateleira e não conseguir perceber se ela está reta. Tive até que perguntar o nome da chave usada na montagem. E se parafuso era a palavra certa pra peça que segura as partes da estante. É, não sei de onde tirei essa ideia de que poderia me dar bem montando móveis sem levar o menor jeito pra coisa.
O que me faz lembrar de uma história que veio à tona essa semana. Requentar anedotas é uma artimanha propícia em tempos de isolamento. Uma amiga comemorava o aniversário num bar japonês, e eu pedi um yakisoba vegetariano. Quando chegou o pedido de outras pessoas, me dei conta de que aquele não era o tipo de lugar em que eu poderia pedir um par de talheres na maior cara de pau. Comecei a suar frio, inventei que tinha perdido a fome, ia ficar tudo bem porque não tinha feito o pedido sozinha, a outra pessoa ficaria com o prato. O problema era que eu não sabia e ainda não sei usar hashi. Fico nervosa, minha mão chega a doer. Tive que sair do restaurante pra tomar um ar. E acabei voltando um pouco mais corajosa, encarei o medo de usar hashi em público, até consegui comer bem, foi um momento de superação.
Naquela situação do yakisoba, o sentimento não era só de vergonha. Era também frustração e raiva por aparentemente nunca conseguir alcançar a maestria no uso dos palitinhos. Cheguei a pensar que tanto com a chave de boca como com o hashi o sentimento era o mesmo, esse ódio descomunal direcionado a objetos inanimados motivado por uma frustração gigantesca. Não é bem assim. Ao montar móveis, a fúria é crescente. Cada pequena vitória, uma peça que encaixa na outra perfeitamente, é celebrada com a irritação de ter que seguir para o próximo passo. Mesmo que eu goste da sensação de usar a parafusadeira, o fim da montagem é comemorado com um belo resmungo – “que inferno!”.
Tentando usar o hashi, também fico irritada, estremeço quando vejo o arroz japonês caindo de volta na cumbuca quando estava quase alcançando a boca. O atenuante é que pelo menos estou comendo (ou tentando comer) uma comida gostosa. Então percebi que não odeio o pobre hashi. E talvez nem odeie especificamente a chave de boca, mas ela que não ouse aparecer na minha frente tão cedo. Essa semana mesmo ganhei um par de hashi pra treinar em casa. Quem sabe quando estiver vacinada não posso voltar ao bar japonês e comer um yakisoba sem passar sufoco. Olha só, dá até pra praticar tentando segurar os parafusos com o hashi quando chegar a hora de tentar novamente alinhar os andares da prateleira. Socorro.
outra dose
Mulheres falam -- na newsletter de Priscila Pacheco, os textos sempre partem de uma citação. O último envio, Angélica Freitas, casas e coisas que mudam de lugar, me pegou de jeito e me deixou com a vontade de reler Um útero é do tamanho de um punho.
Lembro dos dias em que precisei sair. Da mesma casa, do mesmo apartamento, consumida pela dor e pelo desespero de não conseguir ficar. Uma vontade de ser arrancada de mim mesma, dissolvida em qualquer coisa que não sentisse. Absolutamente devastada por um vazio que não foi deixado pela pessoa que foi embora: era meu o tempo todo.