Serviço de entrega personalizado
#51 -- a passagem da minha irmã pela cidade; e o livro La encomienda, da colombiana Margarita García Robayo
ilustração de Diane Parr na capa do livro editado pela Editorial Anagrama
A minha irmã esteve de visita. É minha irmã mais velha. No caso, a única que tenho. A diferença de dois anos nem é algo relevante depois dos trinta. Pois a minha irmã veio ficar um tempo comigo e, antes de arrumar a mala, me ligou para saber como estava o tempo. Bem naquela hora, eu preparava recheio de pastel. Estava na boca do fogão. Só atendi porque os fones sem fio estavam encaixados nas orelhas. Escutava o livro La encomienda (Margarita García Robayo).
Não sou de atender ligações em qualquer momento. Não assim, desprogramadas. Sem ter me preparado pra isso. (A não ser que esteja procurando emprego, convenhamos.) A voz irritante em inglês sinalizando "incoming call // incoming call // incoming call" me deixou desesperada a ponto de pressionar o botão que calhou de ser a opção de atender.
Conversamos sobre a expectativa da viagem, planejamos passeios, apaguei o fogo, falamos um pouco mais. Depois de desligar, cogitei começar um livro que tratasse da relação entre irmãs para aproveitar o gancho da visita. A mania de procurar uma leitura que se encaixe com a vida. Talvez enquanto montava os pastéis, me dei conta de que já estava lendo esse livro, justamente com personagens-irmãs que moram longe uma da outra.
A distância entre Colômbia e Argentina não é tão diferente da que separa São Luís do Maranhão e Curitiba. O livro La encomienda, que escutava no fone, tem esse título porque a ‘irmã que ficou’ costuma enviar pelo correio pacotes com as mais diversas regalias para a ‘irmã que foi embora’. Fotos de família, desenhos feitos pelos filhos, presentes vindos de longe. Tem a coragem de mandar, inclusive, perecíveis que já chegam estragados e vão direto para o lixo.
Minha irmã não me manda esses pacotes. Nunca mandou. Nem ela, nem outro parente. As encomendas chegam com as visitas esporádicas. Fiz uma lista de itens maranhenses para ocupar o compartimento da mala a que tinha direito. Escolhi: farinha amarela, trufas de cupuaçu, castanha torrada e algumas latinhas de guaraná jesus. Quer camarão seco? Camarão fresco? Polpa de bacuri também? Óleo de babaçu para fazer tapioca? Se não existisse o limite de bagagem por passageiro, daria pra trazer um carregamento para durar meses. Um voo saindo de São Luís não é o mesmo se pelo menos alguém não estiver carregando uma caixa térmica com camarão lá dentro.
Até dá pra encontrar uma boa farinha de mandioca na casa de produtos do norte/nordeste. Talvez no Mercado Municipal também. A castanha de caju torrada do jeito que gosto seria mais difícil de encontrar. Duvido que encontraria por esses lados. A castanha é aquela que parece ter assado na brasa. Com o miolo branco, umas partes mais queimadas que outras. Não de um jeito uniforme, num forno industrial ou doméstico. Essa não tem igual, me transporta para uma tarde na praia muitos anos atrás. Observando o mar, passa alguém vendendo um saquinho de castanha a dois reais, no máximo dois e cinquenta. Uma senhora castanha.
Eu encarava esse transporte de produtos maranhenses para o sul/sudeste como uma forma de mostrar um pouco da minha origem para as pessoas com quem eu estava convivendo. Não podia levá-las pra conhecer minha cidade assim tão fácil, chamar pra ir no meu restaurante preferido. Mas podia dar um chocolate com recheio diferente, oferecer um gole de guaraná jesus, servir farofa na mesa quando recebia alguém no almoço. Para os outros terem alguma ideia de onde eu vim.
Agora, depois de tanto tempo, tantas mudanças, tanta gente que entrou e saiu da minha vida, o que eu quero é manter a minhas tradições. Prolongar certas memórias. E comer o que eu gosto, é claro. Uma relação mais egoísta mesmo. Pensando em mim. E encarando o lugar de onde eu vim de um jeito menos caricato. Sim, temos muitas coisas diferentes, mas não vou desperdiçar meu frete para divulgar a culinária maranhense pelo mundo. (Não que eu não tenha feito uma vez a receita de torta de camarão com as minhas próprias mãos para a pessoa com quem divido a vida hoje. Às vezes, compensa.)
*
As irmãs do livro La encomienda se comunicam por videochamadas. Evito ligar a câmera para conversar com qualquer pessoa. Salvo uma ou outra exceção: no aniversário de alguém, nas festas de final de ano, quando nos damos conta de que estamos há meses sem olhar uma pra cara da outra. O que me incomoda nem é ser vista. Fico constrangida com a fixação que tenho com a minha própria imagem refletida na tela. Não consigo desgrudar os olhos de mim e sinto que vou murchando ao notar que cada vez assumo um comportamento mais artificial.
São os telefonemas que me deixam mais à vontade. Guardo as lembranças de chegar da escola e passar as tardes conversando com as mesmas amigas que estavam na escola comigo, pela manhã. As amizades virtuais chegavam a outro patamar quando nos conhecíamos por voz. Depois que me mudei de cidade, era pelo telefone que dava notícias para a minha família e, aos poucos, desenvolvemos um roteiro mais ou menos padrão que seguimos involuntariamente quando nos ligamos. Saúde, trabalho, casa, novidades de conhecidos. As melhores ligações são aquelas que acontecem, por coincidência, no momento em que alguém tem uma boa história para contar. Quando você tem um relato para o ouvinte certo. Algo que não se perde entre conversas fragmentadas pelo chat do celular.
Desci até a rua para ver a minha irmã entrando no carro a caminho da rodoviária. Era terça-feira de manhã, cedinho, a avenida sem movimento. O primeiro motorista cancelou. Aguardamos a chegada do outro. Aproveitamos esse tempo de espera para conversar mais. Não faltava assunto depois de uma semana juntas. Os temas surgem por associação livre, sem se preocupar em desligar o telefone e seguir para um compromisso. Nesse mesmo dia, voltando pra casa depois do trabalho, notei a decoração de natal nos estabelecimentos da vizinhança. Ela não estaria mais em casa. Caminhei em silêncio, sem música, sem livros. Contente de perceber que ainda temos esses momentos de cumplicidade juntas.
mais doses
- Para quem ficou com vontade de saber mais do livro de Margarita García Robayo, esta resenha de “La encomienda” escrita por Jazmina Barrera: “Ahora sé de qué va La encomienda, y también que es un deber de las reseñas explicarle al público de qué trata el libro. Pero no quiero. Temo que hacer un resumen sería echarlo a perder (en el fondo es eso siempre, pero con esta novela más).”
- Tive contato com Margarita García Robayo no posfácio que ela mesma narrou no audiolivro de A vida privada das árvores, de Alejandro Zambra.
- Perdida no espaço: Memórias de uma residência literária no Brasil, relato de Margarita García Robayo na revista piauí com tradução de de Sérgio Molina e Rubia Goldoni.
e três links
sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #119: Espero que você não escreva sobre mim. sabe aquele conto Cat person que viralizou anos atrás? esse texto fresquinho da Taize tem um jeitinho parecido (parecido com as partes boas do estilo de Kristen Roupenian, vale dizer).
23 coisas bem aleatórias que aprendi por aí e talvez te sirva para alguma coisa: Ou talvez não tenha valor algum. Só lendo pra você descobrir, na
.O fabuloso gerador de lero-lero: e por que escrevo na
.
Obrigada, meu bem!!
Aqui também na Bahia castanha boa é aquela com partes queimadinhas por fora e macia por dentro. Para acompanhar uma cervejinha. ♥️
Adorei esse texto 💓 E, nossa, me teletransportou exatamente pra essas mesmas castanhas, mas que no meu caso vinham do Ceará. Umas assim, queimadinhas, outras carameladas.