Onívora
#11 -- a relação inusitada entre amar mulheres e o vegetarianismo; breve defesa dos rótulos; caranguejo com farofa e algumas conclusões óbvias
Quando eu me entendi lésbica, percebi que já não dava pra me dizer vegetariana.
Fui parando de comer carne ali por 2016 de um jeito, digamos, natural. A minha irmã veio com essa conversa de ser vegetariana quando nós duas estávamos mais ou menos morando em São Paulo. Eu era daquele tipo horrível de gente que falava: não importa se naquela lanchonete só vai ter batata frita pra ti, eu quero comer lá e pronto, bora.
De repente, me vi cercada por pessoas vegetarianas. Sabe quando duas pessoas que não se conhecem têm esse algo em comum e você fica com a impressão de que todo mundo faz essa coisa menos você? Tipo acontece hoje com a febre dos patins? Então, era assim com o vegetarianismo.
Foi por inércia que conheci novos restaurantes, novas receitas, novas maneiras de preparar vegetais. E a vontade de comer carne foi apenas minguando. Nesses tempos, eu dividia apartamento com uma vegana-com-experiência-de-cozinha que fazia ótimas esfihas com proteína de soja (a famosa pts) e tortas de chocolate à base de creme de abacate. As possibilidades dessa culinária enigmática me deixavam boquiaberta.
Sem grandes reflexões sobre sofrimento animal ou sobre impactos no meio ambiente, parei de comprar carne no mercado (até porque eu era péssima fritando bifes ou assando frango) e passei a escolher a opção vegetariana em lanchonetes, principalmente quando era um dos itens mais baratos do cardápio.
Saía do jornal tarde da noite e passava no balcão para a rua de um restaurante com um nome péssimo, um nome que convidava os incautos a visitarem o lar do bicho que eles comeriam lá dentro. Enfim, é cada coisa, né, eu levava o sanduíche da casa na versão sem qualquer produto de origem animal já sabendo o papel ridículo que estava encenando em pleno centro da cidade. Pelo menos o preço ficava em conta.
Veio então a mudança pra Curitiba e a oportunidade de já me apresentar como uma pessoa-que-não-come-carne. Ou como uma pessoa-que-está-parando-de-comer-carne.
O burburinho dos meus colegas de faculdade insistia que a coxinha com catupiry da cantina era uma das melhores de toda a cidade. Comprei uma por curiosidade num dia de muita fome antes da aula, e essa foi uma das últimas comidas com carne que experimentei pra ter a certeza de que estava me tornando vegetariana (a coxinha também não era lá grandes coisas).
Não me privava das coisas que tinha vontade de comer pra depois não sentir falta. Era a estratégia que funcionava pra mim. Uma anedota melhor sobre esse momento será-que-estou-mesmo-me-tornando-vegetariana? foi num final de semana em Floripa. Estava numa hamburgueria acompanhada de duas herbívoras calejadas, e o pedido veio errado.
Três lanches com carne foram devolvidos à cozinha. Hm, poderia ter comido o meu, mas tudo bem, talvez não quisesse comer carne mesmo, vou experimentar o (insira aqui um dos sabores clássicos de hambúrguer vegetariano que já não me lembro se era lentilha, grão de bico ou feijão).
Tudo corria bem no que eu entendia como um vegetarianismo incipiente. Já tinha consolidado um novo sabor pra minha especialidade na cozinha: o bacon da quiche lorraine foi substituído por um recheio de alho-poró. Aproveitava a opção sem carne no jantar do restaurante universitário -- mesmo quando o prato oferecido era mais um tipo de feijão além do já servido na ala do buffet coma-quanto-quiser. Fui até agraciada com a abertura de uma lanchonete vegana na rua da minha casa. Os astros do vegetarianismo estavam alinhados.
E aí lembrei que sou maranhense de São Luís. Nascida e moradora de uma ilha até os meus 17 anos. O que seria de mim quando voltasse pra minha terra?
A carne de sol era o de menos. O que me preocupava eram os frutos do mar. As visitas a São Luís sempre foram marcadas pelo roteiro gastronômico: o caranguejo toc-toc na Barraca da Marcela, o peixe frito no bar do Capiau na Praia do Meio, a torta de camarão no prato típico maranhense, junto com arroz de cuxá -- que também leva camarão.
Aliás, o dia de almoçar caranguejo é uma tradição familiar. A gente se encontra direto lá no restaurante na avenida litorânea. Só vai quem gosta de caranguejo. Quem não é chegado e vai mesmo assim, sofre com o arrependimento quando se vê sozinho no silêncio durante a refeição. Ou reclama que comer caranguejo não enche a barriga, veja o absurdo.
Todas as fofocas devem ser colocadas em dia antes da comida ficar pronta. Lá vem a porção de caranguejo, o arroz de toucinho, o arroz branco, o vinagrete, a farofa e mais um potinho extra de farofa que um só não é suficiente. A conversaiada é interrompida.
Só se ouve o martelar das patas sendo quebradas na pequena tábua de pedra e os diálogos entrecortados de outras mesas. Lá no fundo, o barulho do mar. Vez ou outra, alguém faz um comentário com a boca cheia se uma patinha recebe uma martelada exagerada e sai voando em alguém (eita, tá vivo!).
Como moradora honorária da Região Sul, não é todo dia que consigo voltar pra minha cidade natal. Uma viagem por ano, uma caranguejada por ano. Não sobra muito tempo pra pensar em vegetarianismo nas visitas curtas em que eu tento me esfregar em cada cantinho de São Luís pra marcar território. Nunca tomei a decisão de parar de comer o peixinho frito no recesso de dezembro. Levava o hábito de não comer carne só nos outros meses do ano.
Corta pra três anos depois de ter parado de comprar carne no mercado, logo quando comecei a me relacionar com mulheres. Eu estava caminhando os poucos metros entre a padaria 24h da esquina e a portaria do prédio onde eu morava, pensando na dúvida que rondava a minha cabeça em todo e qualquer momento naquela época: em qual rótulo eu mais me encaixaria? Lésbica, bissexual ou nenhum desses dois?
No fundo, no fundo, eu já sabia. Queria sair comentando com qualquer um na rua: ei, tu sabia que eu descobri AGORA que sou lésbica? Se saísse uma matéria me chamando de sapatão eu também comentaria apenas eventuais crases faltantes como a Adriana Calcanhotto fez sobre o suposto caso com Maitê Proença.
A descoberta tardia me deixou com vontade de me embalar num rótulo espalhafatoso de sapatão e, no fim das contas, deveria desapegar de uma etiqueta que não me servia mais. Se dava tanto valor ao usar a palavra certa pra falar da minha sexualidade, também deveria me importar um pouquinho ao sair por aí me dizendo vegetariana se não está nos meus planos parar de comer cartucho de camarão – em outros cantos, conhecido como canudinho, é aquele salgadinho de festa, sabe.
Até porque dei um passo para trás e, num completo desvio do meu personagem, eu me reconectei com o sanduíche de um certo fast-food com dois pães de gergelim, frango empanado, alface americana e molho. Que fase. O pior é que não dá nem pra culpar a pandemia.
Já chegar se apresentando com um rótulo vegetariano seria mais fácil do que ter que explicar “ah-então-não-como-carne-mas-depende”. Assim como era fácil no começo me dizer vegetariana enquanto eu estava de fato me tornando vegetariana. Definitivamente me perdi no personagem. Não comer carne boa parte do ano não me faz uma pessoa vegetariana. E não existe isso de quase vegetariana. (Eu avisei que as conclusões seriam óbvias.)
O contato inicial com o vegetarianismo foi fora do contexto político da coisa. Só depois fui atrás de informação sobre o impacto do consumo exagerado de carne no mundo. E hoje me sinto bem sendo uma pessoa que só cozinha vegetais. Mesmo nas visitas curtas a São Luís, chega um momento em que me sinto saturada de frutos do mar.
Vou perdendo a vontade de comer até torta de camarão com vatapá e começo a procurar desesperadamente os lugares com boas opções vegetarianas. Entro na cozinha da minha mãe e sinto falta dos meus temperos e dos potes de grão de bico no congelador sempre no ponto pra fazer hommus a qualquer momento.
“Você tem medo de deixar de ser vegetariana?”, me perguntaram dois anos atrás. “Não! Não sinto nenhuma falta de comer carne”, fui convicta na resposta. O medo que eu sentia era de, na verdade, não chegar a ser vegetariana. Os frutos do mar sempre foram um tabu nessa conversa.
Hoje percebo que estava enxergando minha relação com a comida de forma equivocada. Não ter me tornado vegetariana até hoje talvez signifique que talvez eu nunca deixe de comer frutos do mar. Faço o que dá, diminuindo o consumo de queijo mo meu dia a dia, aproveitando essa deixa pra pensar melhor se quero continuar comendo aquele lanche de fast-food. Esse detalhe é complicado, né. Vou largar disso, me decidi.
outras doses
Por que veg? — o almanaque de Sandra Papa Capim sobre as principais questões sobre parar de consumir produtos de origem animal, partindo da pergunta “O que significa ser vegetariana/vegana?”.
Nina Nina Não #41 À mesa -- “Escrever é quase como colocar alguém do outro lado da minha mesa.”
Trajetos de escrita #51 - Como cultivar magia em tempos de austeridade?
Já citei algumas várias vezes – nessa newsletter, em minhas oficinas e em outros espaços – as palavras de Audre Lorde, porque é preciso sempre lembrar que a poesia não é um luxo. A poesia como uma feitiçaria, como um uso mágico da linguagem que nos permite acessar nossos sentimentos e transmutá-los em ideias e ações, é um poder vital para resistir a um sistema de opressões que nos quer esgotadas e silenciadas. Tentar se manter criativa em tempos austeros, pode parecer um absurdo ou uma impossibilidade, mas talvez seja o que, no fim do dia, vai sustentar um fio de esperança e, principalmente, de vigor. E é preciso se manter vigorosa, desejante, viva para atravessar esses tempos.
saideira
Uau, quanta gente nova! Na semana passada, fui mencionada na entrevista da Gaía Passarelli (Tá Todo Mundo Tentando) com Luciana Andrade (flows magazine), o equivalente a sair numa notinha de coluna social de um jornal carioca.
Apesar de ser uma grande entusiasta das newsletters, fico meio assim sem jeito quando me dirijo a você aí que está me recebendo na sua caixa de entrada (até hoje não consegui pensar num jeito de me despedir nos e-mails e penso nisso mais do que gostaria). Então, oi! Sou a Luisa e tô aqui pela conversa fiada. Aproveito pra contar que deixei no medium as três partes do Tratado Sobre Escrever Na Internet, publicado na minha época de TinyLetter.
E, pra quem é de Isabel Allende, saiu em agosto a crítica que escrevi para as Valkirias sobre a minissérie da Amazon Prime: Isabel - o clichê sobre a escritora chilena nas mãos erradas. Vou só comentar que deu pra usar a expressão “momento ferrantesco”.
Rolando de rir aqui... Fiz a transição para o veganismo durante os anos em que morei em São Luís! Me vi naquela mesa cheia de gente na Litorânea comendo caranguejo e eu escolhendo uma salada... (que era tipo a guarnição do prato deles!). Adoro ler sobre o Maranhão... Sinto saudades!