O caderno verde
#13 -- folheando anotações de leitura dos últimos cinco ou seis anos; alguns trechos em espanhol; uma retrospectiva
O trecho copiado à mão na primeira página é de Maria Luisa Bombal. Faz tempo que não encosto na edição com a obra completa da escritora chilena. Ler a passagem de um de seus contos logo no começo é um lembrete de que essas poucas linhas sobre a felicidade estavam me rondando ali por volta de 2016, talvez 2017.
“Puede que la verdadeira felicidad esté en la conviccíon de que se ha perdido irremediablemente la felicidade. Entonces empezamos a movernos por la vida sin esperanzas ni miedos, capaces de gozar por fin todos los pequeños goces, que son los más perdurables.”
Reparo num trecho sem identificação. Logo reconheço o texto de Zélia Gattai, provavelmente no livro Jardim de inverno. Ela reclama de ficar sozinha, padecendo de ciúmes e saudades no Castelo dos escritores (sabe-se lá em qual país) enquanto Jorge estiver na Polônia, ainda que seja “compreensiva assim como devem ser as mulheres de maridos engajado em lutas sociais e políticas”. É a única citação de qualquer livro de Zélia.
O caderno é de capa dura. Um fundo verde com um padrão de flores também verdes. Foi costurado por uma amiga que me deixou um recado na primeira página, desejando parabéns pelo meu aniversário de 25 anos em 31/07/2016. Anos depois, preenchidas as páginas em branco com trechos de livros marcantes desse meio tempo, o recado funciona como uma dedicatória para esse compilado de leituras. Alguns de meus livros preferidos estão ali. Outros que eu nem lembrava direito de ter lido também. Poucos se repetem.
Faz parte do ritual reler trechos marcados nos livros, selecionando quais merecem ir parar no caderno. Só depois disso considero a leitura finalizada e estou livre pra partir pra outra. Até leio mais de um livro ao mesmo tempo, mas sempre considero um deles como o principal. São os princípios de um relacionamento não-monogâmico contemporâneo aplicados de forma equivocada com os livros.
O fichamento informal é ainda mais importante se o livro é emprestado ou se a leitura foi feita no kindle. Não posso folhear as páginas e relembrar os trechos significativos se o livro não está na minha estante. Abrir o caderno e tentar encontrar os registros que estou procurando entre a sequência de leitura dos últimos anos é um ato substituto que cai bem. E ainda corro o risco de me distrair com trechos de outros autores. É um bom risco.
Mais um trecho sem a identificação prévia que reconheço de cara como parte do livro As três marias de Rachel de Queiroz. A protagonista está no alto da torre do colégio de freiras e observa o movimento do centro da cidade lá embaixo, uma cena vertiginosa. Uma das minhas preferidas no livro.
Algumas anotações são precedidas pelo título, outras não. Leio aspas seguidas de um mesmo livro sem saber quem escreveu. O texto parece ser de Elena Ferrante. Será mesmo? Não sei se já lia Ferrante quando comecei a usar o caderno. A dúvida desaparece quando me deparo com a expressão “pobre coitada”, só faltava identificar o livro. Então me deparo com o nome “Olga” e percebo, enfim, que é uma parte de Dias de abandono.
Páginas e mais páginas de longos parágrafos em espanhol copiados de Tomás Eloy Martínez no livro El cantor de tango. Releio os trechos sem entender por que esse livro me marcou tanto no momento da leitura. Talvez pela proximidade de uma viagem a Buenos Aires. Ainda que isso não pareça suficiente.
Reencontro um livro que se tornou um preferido e fico com vontade de reler Aparecida de Marta Dillon, sobre uma filha que finalmente encontra sua mãe desaparecida na ditadura militar argentina. O departamento responsável no governo encontra parte da ossada, no caso. A jornalista e escritora se reencontra com um passado pontiagudo. Anotei a data de leitura, 18.04.2018. Não costumo fazer isso.
“La ilusión de que siempre hay algo más que saber o que buscar y no querer buscarlo ni preguntar para que no se agote, que no se apague el rescoldo, de eso se trata ser hija cuando tu madre está desaparecida.” (p.46)
A pontinha de uma página está dobrada, chamando atenção para trechos de Kindred (Octavia Butler) ou Rebecca Solnit (no ensaio “Uma breve história do silêncio”): “Não poder contar a sua história pessoal é uma agonia, uma morte em vida que às vezes se torna literal.” (p.29)
Encontro a primeira aparição de Isabel Allende no caderno, com trechos de O plano infinito, uma leitura que nem gostei tanto e, ainda assim, rendeu quase seis páginas de anotação. É uma versão da história de vida do ex-marido de Isabel. O livro que ela estava lançando quando sua filha Paula ficou doente.
Pelo visto, eu li Big little lies (Liane Moriaty) entre dois livros de Hilda Hilst (A obscena senhora D e Contos d’escárnio). Não consigo me lembrar se já tinha visto a série com Nicole Kidman e Reese Witherspoon.
Chego a um trecho de uma coluna de Ferrante no The Guardian (Why am I Always the last to leave a party?) e só de ler o título do texto já sei qual é o trecho que eu copiei. A anotação foi feita ali numa tentativa de ocupar vazios do caderno. A página seguinte está em branco.
Na primeira leitura de Her body and Other parties de Carmen Maria Machado, antes da tradução do livro para o português, as duas primeiras citações são sobre mulheres desejando outras mulheres. Não especifiquei os contos de cada trecho copiado.
Uma frase de Rosa Montero em La loca de la casa antecipa o livro Paula:
“sigo pensando que escribir te salva la vida. Cuando todo lo demás falla, cuando la realidade se pudre, cuando tu existência naufraga, siempre puedes recurrir al mundo narrativo”. (p.191)
Os trechos de Isabel Allende no livro sobre a perda da filha são tão dolorosos que só consigo me concentrar nas citações sobre a escrita. Penso que Paula e Aparecida são leituras que dialogam entre si.
“La escritura es una larga introspeccíon, es um viaje hacia las cavernas más oscuras de la conciencia, uma lenta meditación. Escribo a tientas en el silencio y por el caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristales que caben en la palma de una mano y justifican mi passo por este mundo”.
Um trecho potente do livro Vasto mundo. Faz um tempinho que não leio nada de Maria Valéria Rezende. Em seguida, duas páginas sobre A amiga genial, provavelmente de uma releitura.
Quando o trecho está em inglês, é difícil ler cada anotação até o final. É o que acontece com Lost children archive (Valeria Luiselli). A palavra “rapariga” me lembra de ler lido a autobiografia de Nadia Murad em português de Portugal (Que eu seja a última – minha história de cárcere e luta contra o Estado Islâmico). Era a tradução que tinha.
Muitas páginas preenchidas em caneta cor de rosa com passagens do livro Maternidade (Sheila Heti), que li perto da participação da autora na Flip de 2019. Seleciono uma frase de outra anotação que mais parece um microconto: “Em nosso lar polígamo, ouvir atrás da porta não era apenas falta de educação, era um crime.” (Fique comigo, Ayòbámi Adébáyò)
Uma única citação de Alice Munro no conto “Fugitiva” seguido por uma única citação de Maggie Nelson no livro Argonautas.
“O que podem esperar duas mulheres que recusam o amor dos homens?” O questionamento na página 56 de Bem-vindos ao paraíso (Nicole Dennis-Benn) é seguido por duas páginas em branco que posso preencher como bem entender, inclusive pra responder essa pergunta.
Entre os trechos de Afrodita (Isabel Allende), localizo aquela parte sobre o cheiro de alho que fica nos dedos quando estamos cozinhando que, no contexto, juro que parece uma frase erótica: “Luego pico el ajo por el puro gusto de olerme dos dedos, porque igual podría usarlos entero”.
Sinto um arrepio quando chego nas anotações de In the dream house (Carmen Maria Machado), lido antes da tradução (“A casa dos sonhos”). Só vejo trechos sobre a escrita de um livro de memórias. As partes sobre o trauma do relacionamento abusivo eram pesadas demais para serem copiadas.
Duas passagens próximas uma da outra sobre desaparecimento. “Tenho a sensação de ter desaparecido na semana passada. [...] Não só eu tinha desaparecido, como estava invisível. Quer dizer, durante um bom tempo eu achei que nem sequer estava lá.” (Manual da faxineira, Lucia Berlin). E depois, uma frase de Eileen Myles em Chelsea Girls: “Sempre tive medo de desaparecer, de me extinguir, se parasse de tentar decidir quem eu era, como eu parecia ser para os outros.”
Mais Elena Ferrante. Nada ali sobre desaparecimentos. Um adesivo marca uma cena de sexo narrada pela tia Vittoria em A vida mentirosa dos adultos na página 91.
Leio trechos da releitura de A mulher de pés descalços (Scholastique Mukasonga). Por que não anotei nada na primeira vez que li? Me confiei na marcação no próprio livro, no livro que emprestei e que provavelmente não será mais devolvido?
Novas anotações de A vida mentirosa dos adultos. Nem todas são repetidas. Não demorou muito e reli o livro quando ganhei a edição física. Mais Isabel Allende. Já cheguei ao último livro que li dela: Largo pétalo de mar.
Me demoro nas citações de Minha casa é onde estou (Igiaba Scego) sobre a morte de cidades; a relação de seu avô com o fascismo; a regra de que, na Somália, um filho nunca é uma questão individual; e um ditado islâmico que diz que o paraíso está embaixo dos pés das mães (al-jannatu tahta adqam il-ummahat, ou pelo menos foi assim que copiei). Trechos que, principalmente na parte do fascismo, servem como uma introdução às palavras de Audre Lorde em Irmã Outsider: “Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você.”
Mais anotações de As luas de júpiter do que de qualquer outro livro de Alice Munro até agora. Entre elas, a frase que eu usei pra pensar a minha virada para os trinta anos: “Estavam todas com seus trinta e poucos. Idade em que às vezes é difícil admitir que o que você está vivendo é a sua vida”. (p.106)
Em letra de forma, uma passagem da página 199 do primeiro volume dos diários de Susan Sontag: “Não me senti atraída por ela, mas foi muito bom estar em casa, por assim dizer – ter mulheres, em vez de homens, interessadas em mim”.
Poucas páginas depois, vejo os trechos de O corpo dela e outras farras (Carmen Maria Machado), agora em português. Percebo que anotei o mesmo trecho no original e na tradução:
“Percorro o seu corpo com os olhos cheios de culpa, mas enquanto meu lápis traça os seus contornos, minha mão faz o mesmo nos confins mais secretos da minha mente.”
As páginas finais foram tomadas por parágrafos inteiros de Gloria Anzaldúa em A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios, trechos sobre escrita, o papel tradicional de la mujer, sobre camadas de identidade (uma chicana, uma mestiza, uma mulher de cor) e, por fim, a ideia do banco de areia como uma maneira de estabelecer alianças em socidade, uma ponte mais ‘natural’ por ser um cume submerso ou parcialmente exposto feito em alto mar pelas ondas da praia. O resto do ensaio ficou no caderno seguinte. A data da última entrada, 07.09.2021.
saideira
1.
Os contos da gaúcha Veronica Stigger em Ermo sombrio turvo, um livro que tava parado na minha prateleira e resolvi pegar por ser fininho. Tenho lido vários livros de contos e sinto que os contos de Veronica são mais experimentais, não te pegam pela mão e te levam pra história, sabe. Daquele tipo de livro que você vai amar alguns textos e nem lembrar mais de outros, mesmo que você tenha acabado de virar a página. Nada como entrar num bar numa cidade do outro lado do Atlântico e finalmente se dar conta de que tua esposa te largou pela amiga de infância dela, imagine só.
2.
Tomei a segunda dose da vacina de covid na última quarta-feira (06.10) e, como tinha um compromisso pela tarde, tive que encarar a fila de pico pela manhã. Levei Uma história da leitura (Alberto Manguel) pra me acompanhar na espera de quase duas horas. Com esse texto já escrito, me deparei com o seguinte trecho de uma conversa imaginada entre Francesco Petrarca (1304-1374) e Santo Agostinho (354 d.C. -430 d.C.):
“Agostinho: Sempre que leres um livro e encontrares frases maravilhosas que te instiguem ou deleitem teu coração, não confies apenas no poder de tua inteligência, mas força-te a aprendê-las de cor e torná-las familiares meditando sobre elas, de tal forma que ao surgir um caso urgente de aflição terás sempre o remédio pronto, como se estivesse escrito em tua mente. Quando encontrares quaisquer trechos que te pareçam úteis, faz uma marca forte meles, que poderpa servir de visco em tua memória, pois de outra forma eles poderão voar para longe.”
3.
Pouco depois de chegar a essa parte do livro, no capítulo “O livro da memória”, a fila passava ao lado da quadra esportiva de um colégio. Tocou o instrumental de Aquarela, a música de Toquinho, anunciando o recreio para crianças que tinham por volta de dez anos.
Correria. Todo o espaço foi ocupado pelos alunos. Aquele barulho de recreio me levou na hora para memórias da minha vida escolar, tentando me concentrar em algum livro perto de tanta zoada. Quando me espanto, vejo que alguns deles estavam brincando de “Batatinha 1-2-3” como na série sul-coreana da Netflix, Round 6.
Eu que nunca tinha ouvido falar dessa brincadeira antes de ver na televisão, pensei que poderia não ser comum lá no meu círculo de São Luís. Vai que crianças de outra parte do país já brincavam disso antes. Até que a mulher atrás de mim rompeu o silêncio entre a gente que durava mais de uma hora pra perguntar se eu sabia do que eles estavam brincando. Foi aí que percebi que toda a fila que estava perto da quadra observava a cena com espanto.
Feliz por esse hábito que proporcionou esse texto tão bonito. Gostei muito.
Sobre a brincadeira de Round 6: eu brincava quando criança, imagino que a série tenha feito a brincadeira ressurgir ou se popularizar, mas já existia uma versão brasileira nos anos 90 (talvez antes).