Identidade, aproximação, reconhecimento
#32 -- carta para destinatária não nomeada da internet
Curitiba, 26 de dezembro de 2022.
Desde que eu tirei um livro de capa amarela da prateleira da minha ex-madrasta e comecei a ler Isabel Allende, sinto um interesse pela cultura dos países latinoamericanos aqui perto. Aqui perto? Eu morava em São Luís do Maranhão e a fronteira mais perto dali deve ser a da Guiana Francesa. Não era perto.
Nos livros de Isabel Allende, a história do Chile se confunde com a vida das personagens. Mesmo que ela às vezes escreva sobre ‘um país não nomeado na América Latina’, como se fosse difícil saber de que lugar ela está falando. Essa tradição de não nomear país latino é, sim, datada. Só não dá pra esquecer que a escritora já tem 80 anos. Tudo bem se ela lança um ou outro livro como se o ‘boom latinoamericano’ dos anos 60 tivesse acontecido ainda ontem.
Como seria esse país não nomeado na América Latina? De preferência, um país entrando ou saindo de uma ditadura militar. Marcado por desigualdades sociais. Cultura popular forte. Falando assim, poderia ser o Brasil. Mas, nos contextos em que essa expressão aparece, nunca poderia ser o Brasil.
Lembro de um dos primeiros livros que li que se passava nesse país genérico: Bel canto, da escritora estadunidense Ann Patchett. Como eu adorava essa história de um sequestro na casa do vice-presidente de ‘algum país da América Latina’. Era uma festa, e todos os convidados foram feitos reféns por alguns dias, talvez mais de uma semana. Hoje eu já veria com desconfiança se pegasse o livro e visse que a autora é dos Estados Unidos.
A curiosidade pela cultura (e, principalmente, a literatura) latinoamericana, surgida na adolescência, foi se firmando na vida adulta. Os inúmeros livros de García Márquez que li na faculdade. A poesia e a música de Violeta Parra. Uma autobiografia de uma escritora argentina que eu só consegui ler porque o livro Aparecida (Marta Dillon) foi relançado numa coleção de jornal quando eu calhei de estar em Buenos Aires. Sempre de olho nos nomes que foram surgindo: Alejandro Zambra, Valeria Luiselli, Mariana Enríquez, a nova onda de Silvina Ocampo.
Fico com a dúvida: seria o caso de um interesse motivado por uma identificação ou um puro e simples interesse, um fascínio de como as palavras soam em espanhol?
A identificação mais forte que já senti com livros, fora da literatura brasileira, foi com livros de uma região que os mapas me apresentam como África Ocidental. Pra ser mais específica, com livros nigerianos. A Nigéria que, como muitos, conheci nas histórias da Chimamanda e depois parti para Buchi Emecheta, na leitura de Alegrias da maternidade.
Foi uma questão de reconhecer o sabor de uma fruta, talvez um ingrediente comum, receber pistas sobre a origem de alguns pratos da culinária maranhense. Eu só fui entender de verdade que tinha crescido num estado com a maioria da população negra quando eu me mudei para um estado branco como Santa Catarina. E isso me faz pensar em tudo o que significa ser uma maranhense branca.
A cultura popular maranhense é toda uma herança das tradições de pessoas escravizadas de diferentes lugares. O bumba-meu-boi foi resistência, como vi num espetáculo esse ano, no final de semana anterior ao primeiro turno, no principal teatro de São Luís. Foi um musical sobre um dos discos maranhenses mais famosos. Bandeira de aço, produzido por um músico chamado Papete, um disco que teve que lidar com censura da ditadura militar.
Sendo maranhense fora do Maranhão, a identificação também aparece quando leio narrativas de imigrantes nigerianos na ficção. Bummi, um dos contos de Bernardine Evaristo no livro Garota, mulher, outras fala sobre mãe e filha nigerianas que moram na Inglaterra. A filha, já na faculdade, começa a passar pelo processo de se tornar culturamente inglesa, se distanciando dos costumes e sotaques da família.
“se você se dirigir a mim como mãe de novo vou te bater até pingar sangue e depois vou te pendurar de cabeça para baixo na varanda com a roupa para secar.
eu sou a sua mamãe.
agora e sempre.
não esqueça, abi?”
Nos meus primeiros meses morando em Florianópolis, passei por um diálogo confuso com um colega catarinense. “Eu estava no telefone com a mãe”. Com a mãe? A mãe de quem?, perguntei. Era a mãe dele. Que impessoal. Quem fala da própria mãe como ‘a mãe’? Como se só existisse uma mãe no mundo. Não a minha mãe. A mãe. Foi a minha primeira impressão, hoje já me acostumei.
Lá em casa, quando falo da minha mãe em terceira pessoa, devo dizer ‘mamãe’. Não é um jeito infantil de falar, é só o nosso costume. Sim, tenho mais de trinta anos e chamo a minha mãe de mamãe. Mamãe fala da minha vó como ‘mamãe’. Vovó, quando conta alguma história da minha bisa, também usa a palavra ‘mamãe’. Ai, como é fofo o jeito que você fala, diz mainha também?
Anos depois, meu sotaque segue firme e forte. Cada vez tenho mais curiosidade pra conhecer mais a minha própria terra. É uma forma de manter o vínculo com São Luís. É assim que eu me aproximo do meu Brasil, pra usar tuas palavras.
Agora sobre os outros Brasis, tem tanta coisa ainda por conhecer. Tu sabia que em 2007 uma baleia-minke já foi parar no rio Tapajós, no Pará? Essa história não sai da minha cabeça. Pra mim, conhecer só agora esse caso do aparecimento de uma BALEIA num rio só mostra como tenho que ir atrás de saber, ler, pesquisar.
Espero poder conversar mais sobre isso contigo. Vou querer acompanhar o que tu vai acabar descobrindo. Antes de ir, vou deixar algumas recomendações de cantoras latinoamericanas. Me conta se já conhece alguma dessas:
iLe, cantora de Porto Rico. Meu cd preferido é o ‘Almadura’, de 2019.
Natalia Lafoucarde, mexicana que já gravou dois volume do álbum ‘Musas’, em homenagem ao folclore latinoamericano.
Ana Tijoux, trilha sonora de todo e qualquer filme chileno. Gosto do álbum ‘Somos sur’ de 2014.
Li Saumet é a vocalista da banda colombiana Bomba Estéreo. Conheci a banda com ‘Elegancia tropical’, mas prefiro o ‘Amanecer’.
Núbia, cantora e compositora maranhense, lançou o EP ‘Peso da Ilha’ em 2021.
Essa é uma carta para
, da newsletter Incidente em colares.Fizemos uma troca de cartas secretas num grupo de pessoas que escrevem newsletters. Poderia ter conhecido a Lígia na Flip, talvez morando em São Paulo, com certeza morando em Florianópolis (estudando na mesma universidade! também caiu o livro Incidente em Antares no teu vestibular?). E foi um sorteio online que nos reuniu. Escrevi uma carta baseada em dois textos: Mas ta lascada essa tal américa e Invejo sim, e tô vivendo.
Já recebi a minha carta, escrita pelo
da Ponto Nemo, uma newsletter com temporadas temáticas. A última, que foi quando conheci o trabalho do Arthur (e adorei!) foi sobre Sonhos, Mitos e Sandman.
amiga, que texto! que delícia de ler, quanta coisa nova, importante, quanta indicação boa, que delícia de ler -- já falei? obrigada por isso <3
Amiga, que escrita deliciosa - sua news se tornou uma das favoritas por aqui <3