Horário de almoço
#2 -- um mês usando a praça de refeitório; como eu conheci o local perfeito pra almoçar; a moça da marmita
5 de abril, segunda-feira
Depois de três semanas trabalhando de casa, não estava preparada para um vento frio ao meio-dia. Parece que esse ano realmente vou viver o outono e o inverno curitibano. Ainda é melhor ficar tremendo de frio na praça do que aglomerar no escritório.
7 de abril, quarta-feira
Começou a chuviscar quando sentei no meu lugar de sempre. Aquela garoa chata que não passa, aquela garoa fininha que te molha mesmo assim. O tempo abriu quando voltei ao escritório.
8 de abril, quinta-feira
Finalmente um horário de almoço com um solzão -- e ventinho frio. Será que, se eu tivesse um carro, ficaria dando um tempo lá dentro, estacionada numa rua pouco movimentada como esses carros que vejo aqui na vizinhança?
9 de abril, sexta-feira
Quando chego na praça e vejo que tem alguém sentado no meu lugar, eu me sinto a própria Rory Gilmore comprando a sua árvore de estudo de volta por 20 dólares. Eu nem teria 20 dólares pra gastar assim -- o equivalente a 113 reais. Que raiva. O menu do dia foi um hambúrguer vegetariano que eu não aguentei comer ontem à noite, quando comprei dois lanches depois de ter pedido hambúrguer de carne por engano. Arrebentei o elástico da PFF2 novinha que eu tirei do plástico hoje de manhã. Será que vai dar problema se eu continuar usando a máscara com o elástico amarrado onde ele arrebentou?
12 de abril, segunda-feira
Tinha alguém no meu lugar de novo. E também tinha alguém na minha segunda opção, no banco onde eu me sentei da outra vez que o meu lugar tava ocupado. O jeito foi ir para uma das mesas de dominó. Em algum momento, a pessoa saiu do meu lugar, mas eu tava no meio da marmita (macarrão de espinafre com molho branco), então deixei pra lá. Em outra mesa, tinha um homem sozinho que me perguntou o preço da minha garrafa de água de inox -- o que ele chamou de “cantil”. Ele falou que eu paguei caro e ainda queria me vender mais garrafas. Dizia ele que trabalhava com importação. Logo saí de lá pra comprar a ração dos gatos.
13 de abril, terça-feira
Finalmente meu lugar estava livre. Foi um alívio. Passamos o dia inteiro sem água no escritório por causa de uma obra no quarteirão, precisava de alguma felicidade no meu dia.
14 de abril, quarta-feira
Não trouxe marmita, comprei um sanduíche de falafel do restaurante árabe perto do trabalho e o lanche nem era tão bom. Pedi um pouco de maionese de alho e me deram um pote tão grande que eu poderia deixar como herança para meus bisnetos.
15 de abril, quinta-feira
Trouxe um sanduíche de casa que se revirou todo no pote ao longo da manhã. Comi um sanduíche desconstruído. Cheguei tarde na praça e quase todos os lugares estavam ocupados. O distanciamento tava rolando, o problema era o barulho de fuzuê de firma. Isso me fez pensar que numa situação livre de COVID-19 eu também não ia querer almoçar no refeitório do trabalho.
16 de abril, sexta-feira
Esqueci de trazer talheres. Fui salva pelo garfinho plástico cor de rosa da aniversariante da semana. Como não tiro a máscara na sala de trabalho, levei um pote vazio na mochila já pensando em trazer bolinhas de queijo e um pedaço de bolo pra comer na praça. Esqueci também de esquentar minha marmita e tive que comer arroz e feijão frio… quer dizer, não tava frio, tava mais pra temperatura ambiente mesmo. Pelo menos arranjei o garfo.
19 de abril, segunda-feira
Comi um salgado de palmito da padaria. Pense num salgado cansado. Não posso mais deixar de trazer comida de casa.
20 de abril, terça-feira
Ai ai, não trouxe marmita de novo. Tinha gente no meu lugar de novo. Aproveitei o intervalo para desejar feliz aniversário para Jana pelo telefone e aproveitamos para papear um pouco.
22 de abril, quinta-feira
13 graus. Vou ter que arrumar um outro local pra almoçar que seja protegido do vento. Tá uma friaca doida. Será que, na falta desse lugar ideal, eu vou ter que ficar caminhando no bairro depois de comer pra poder me esquentar um pouco?
23 de abril, sexta-feira
Quase que não consigo bater o ponto pra vir almoçar, isso da minha digital nem sempre ser reconhecida me deixa com tanta raiva. Finalmente trouxe uma marmita -- macarrão temperadinho. Vim andando até aqui com um pedaço de bolo de cenoura na mão. Levaram comida no setor e eu continuo lúcida a ponto de não tirar a máscara pra comer perto de outras pessoas.
26 de abril, segunda-feira
Hoje aconteceu o que eu mais temia e, de tanto temer sem que tal incidente ocorresse, sinceramente pensei que conseguiria passar sem essa.
Tava sentada no lugar de sempre, comendo apressada uns pasteis de queijo e percebi uma movimentação atrás de mim. Uma mulher sem máscara se aproximava e, quando notou que estava sendo observada, perguntou com um sorrisinho: “Hora do lanche, é?”.
Eu respondi: “Sim, mas não dá pra sentar perto. Somos duas pessoas comendo sem máscara.” Ela ainda teve a cara de pau de dizer que se sentaria do outro lado do banco (!) como se isso fosse fazer alguma diferença. “Do outro lado do banco ainda é muito perto”, tive que dizer, já sem paciência. “Ah, então tá bom”, respondeu a mulher, ríspida como se tivesse ficado ofendida.
Ela comeu em pé, encostada num dos equipamentos de exercício da praça como se no próprio quarteirão não tivesse a opção de pelo menos outros dois lugares pra ela se sentar. Eu, hein. Como já tava quase me atrasando, comi rapidinho e fui-me embora.
29 de abril, quinta-feira
Trouxe pinhão na marmita e tava fazendo tanto frio (8 graus) que não aguentei ficar sentada o tempo todo, comecei a caminhar ao redor da praça pra me esquentar. Já tava quase fazendo agachamentos como o cara que resolveu se exercitar na praça numa hora dessas.
30 de abril, sexta-feira
Mais um dia sem marmita. Caminhei até uma padaria gostosa e lá comprei um pedaço de pizza de abobrinha com um cookie de chocolate pra comer agora e uma baguete pra levar pra casa. Até pensei em comer por lá, perto da pista de skate, mas voltei pro meu lugar de sempre porque, apesar do frio, o sol prometia. Óbvio que ficou nublado assim que me sentei. Tive que levantar dali mais cedo que de costume porque já estava começando a congelar. É sério, ou eu descubro um lugar mais quentinho aqui na praça ou vou ficar fora do escritório só o tempo de comer. Não acredito que estou pensando em perder minha hora ao ar livre.
Bônus --13 de maio, quinta-feira
Saí do escritório, tirei meu celular do modo avião e recebi mensagens avisando que minha namorada iria aproveitar o dia de folga pra almoçar comigo na praça. É claro que meu lugar estava ocupado, que inferno, todo dia isso. Sentamos numa mesa de dominó e comemos. O menu foi a sopa de lentilha da marmita com o fast-food que ela levou pra gente. Foi nosso primeiro date fora de casa depois de tanto tempo que nem sei. Minha praça foi aprovada.
Onde é que eu vou almoçar? Essa era a minha maior preocupação antes mesmo de ser contratada. Ainda no processo seletivo, procurei imagens da rua da empresa assim que a entrevista foi confirmada. No endereço, vi construções térreas, bastante espaço ao ar livre e várias árvores charmosas. “Vou poder almoçar no jardim”, logo pensei. Quando desci do carro, no dia marcado, percebi que tinha me encantado com a casa vizinha ao escritório. A sede era um portão de ferro, um estacionamento desértico e a porta. Entrei.
Com a confirmação de que a vaga era minha, me dediquei a traçar um plano mais elaborado para poder almoçar num lugar minimamente seguro em tempos de coronavírus. No mapa, identifiquei uma praça que eu até conhecia de relance. Dava pra ir e voltar numa boa, aproveitava pra dar uma caminhadinha, esticar as pernas, conhecer a vizinhança.
No primeiro dia, me sentei numa escada lateral em frente a uma quadra de esportes. Batia muito sol, o verão no auge, local reprovado. No outro dia, tentando fugir do calor, levei uma canga e me sentei debaixo de uma árvore, observando os cachorros que passeavam na hora do almoço. Não era muito confortável ficar sentada no chão, logo desisti dos piqueniques improvisados.
Também almocei nas mesas de dominó -- dessas com o tabuleiro desenhado na pedra que costumavam ficar cercadas de idosos disputando campeonatos aos domingos -- até ficar incomodada com a quantidade de bichos que subiam na minha roupa e pegavam carona até o escritório -- uma fauna bizarra composta por aranhas muito brancas, grilos muito verdes, insetos não identificados tão pretinhos e que pareciam desenhos em duas dimensões de tão achatados que eram.
Não consigo me lembrar do dia em que conheci o local perfeito. Passou despercebido entre tantas tentativas. Só sei que não quis mais trocar de lugar e faltei expulsar quem ousava ocupar o meu espaço antes que eu chegasse à praça. Só perdoava quando eram os garis da limpeza que estavam descansando por lá.
Como explicar o lugar perfeito? Não é um simples banco de madeira. Imagine uma pirâmide formada por toras de madeira, três de cada lado e mais uma no topo. Os pedaços de madeira são refinados na parte superior, visando ao conforto do usuário (lê-se: está garantido o conforto do bumbum). E ainda dá pra apoiar as costas no andar imediatamente acima do que você está sentada. Tem espaço pra deixar a mochila, a marmita, a garrafa d’água, o casaco sobressalente. Resumindo, é um lugar perfeito. E fica ali logo ao lado dos equipamentos de ginástica feitos com o mesmo tipo de madeira, o que sempre me deixou com a dúvida se a pirâmide (ou escada?) não seria também parte da academia. Como era de se esperar, nunca vi muitos exemplares de seres humanos fitness fazendo ginástica entre meio-dia e uma da tarde.
O lugar perfeito só se mostrou não-tão-perfeito-assim quando o inverno foi chegando. Com o calor até dava pra lidar, usando roupas frescas e caçando sombras. Mas é impossível se esconder do corredor de vento gelado que passa no local. Teve dia que passei tanto frio -- pense em alguém tremendo enquanto come uma marmita o mais rápido possível -- que logo depois de almoçar tive que ficar dando voltas na praça pra me esquentar.
Esse momento só não ganha do dia em que estava chovendo e eu tive que comer meu sanduíche num ponto de ônibus pouco movimentado. Ou ainda aquele outro dia em que a chuva era apenas uma ameaça e eu decidi correr o risco de comer na praça. Só pra ter que terminar de comer segurando guarda-chuva numa mão e o sanduíche de falafel na outra. Nada como viver aventuras enquanto fujo do refeitório lotado da firma.
Sair da empresa e caminhar automaticamente para a praça se tornou um ritual diário. Torço para encontrar meu lugar vazio e, quando tem alguém caminhando na minha direção, aperto o passo para chegar ao banco antes do meu rival. Até hoje, todas essas corridas foram disputas individuais. É bom ter esse momento fora da firma. Um total de uma hora e doze minutos de intervalo para tirar a cabeça das planilhas, da conversa fiada do escritório e do risco de contágio em ambientes pouco ventilados.
Com o passar dos meses, me sentindo cada vez mais à vontade no meu lugar cativo, percebi que era possível criar novos laços com a cidade em plena pandemia. Saio de casa já pensando na hora de voltar e tirar os sapatos, lavar as mãos, me livrar da máscara. E, mesmo assim, consigo naquele momento me sentir confortável num espaço público a ponto de ficar sem máscara mais alguns minutinhos depois de já ter comido, torcendo para que os transeuntes percebam minhas bochechas marcadas pela PFF2 e saibam que aquele é meu único alívio no horário comercial.
Que me reconheçam como a moça da marmita e que me vejam como parte da fauna da praça, junto com os bichinhos de cores intensas, com os garis que aparecem às segundas e quartas, com os meninos que treinam basquete na quadra e com a criança que passa de uniforme escolar com a avó e o irmão mais novo, sempre segurando uma pipa vermelha.
outras doses
[newsletter] Associação dos sem carisma #72: Notificações -- essa não é uma newsletter pessoal, vejo mais como uma publicação semanal mesmo. Mas sempre leio as colunas da Taize Odelli (rizzenhas). A da semana passada foi sobre a irresistibilidade de conferir as notificações do celular assim que elas chegam. É horrível ser millenial.
[crônicas] Julia Dantas -- Na corda bamba entre a vergonha e o alívio: um dia desses qualquer resolvi conhecer os cronistas do Jornal Rascunho e me envolvi demais com os textos de Julia. O mais recente é sobre a contradição de viver momentos felizes num contexto tão desesperador.
"No dia em que encerrei meu doutorado, minha mãe ligou para dar parabéns e dizer que tinha na geladeira uma espumante, que ela pensava que tomaríamos numa praça para comemorar, mas que naquele momento não tinha clima e era melhor deixarmos para depois. Aquele momento era o da vigência da bandeira preta no Rio Grande do Sul, véspera do colapso do sistema de saúde. A ideia de ser feliz numa praça, de estourar uma espumante talvez debaixo da janela de alguém que estava esperando notícias de uma UTI, era realmente impensável. Deixamos para depois. Passaram-se mais de quatro meses, e ainda não tomamos aquela espumante."