Falso dilema
#3 -- a possibilidade de me vacinar antes que o previsto; uma viagem imaginada; torta de camarão é minha comida preferida
São Luís é uma ilha. Quer dizer, São Luís fica numa ilha. A ilha tem um porto. Corrigindo, mais de um porto. São Luís fica numa ilha e tem portos importantes considerando critérios portuários. (Existem portos que não são importantes?) Enfim, nas praias da ilha, é comum observar os navios estacionados na linha do horizonte, esperando a vez de chegar ou de sair, não sei ao certo. Só sei que os navios alinhados fazem parte da paisagem e ainda servem pra saber se a maré está subindo ou se está baixando. O problema é que eu nunca consegui decorar a regra. Talvez a maré esteja prestes a subir quando os navios apontam para a esquerda, talvez para a direita. Prefiro viver o mistério que alguns chamariam de ignorância.
Foi de um desses navios que saiu o tripulante com o primeiro caso confirmado no Brasil da variante indiana do coronavírus. Se bem que nada garante que o navio não estivesse atracado no porto, vai saber. Pelo que conseguir acompanhar, a cidade acabou recebendo proporcionalmente mais vacinas que outras capitais numa tentativa de conter a propagação da variante. Como boa maranhense desterrada, observei de perto o ritmo acelerado da imunização por idade, depois dos grupos prioritários. Utilizando a duração de podcasts como medida de tempo, a vez da segunda dose da minha vó demorou um episódio inteiro do Caso Evandro pra chegar (159min). Já o intervalo entre a vacina da minha mãe e da minha irmã foi um episódio do quadro Picolé de Limão no podcast Não Inviabilize (9min46seg).
Levei um susto quando a faixa etária da minha irmã foi convocada para fazer o cadastro prévio no aplicativo da prefeitura. Se a primeira dose dela já estava perto, era porque a minha também estaria. Temos apenas dois anos de diferença. O único agravante é que eu moro a 3.404 quilômetros da casa da minha mãe, em São Luís. O caminho é até mais curto caso eu passe pelo Tocantins e não pela Bahia, economizando 85 km num trajeto imaginário de carro. Antes mesmo da minha irmã receber a primeira dose, abriu o período de cadastro para a minha faixa. A possibilidade de me vacinar antes do que as outras pessoas de 29 anos em Curitiba era uma fantasia que eu alimentava sem acreditar muito nos meus próprios planos. Quando chegar na minha idade, aí sim eu paro pra pensar nisso, compro minha passagem e vou.
A vacinação de “novinhos e novinhas” 25+ foi anunciada pelo prefeito na quinta-feira passada, com a notícia de que a primeira aplicação seria na semana seguinte. Ou seja, nesta semana que vivemos enquanto você – provavelmente – lê esta crônica. Abri a página do cadastro, li os campos que deveriam ser preenchidos, me imaginei digitando o endereço da casa da minha mãe, fechei a página. Só no dia seguinte tive coragem de consultar o valor das passagens aéreas caso resolvesse embarcar no turismo da vacina. O preço estava mais alto que um salário mínimo, isso sem nem considerar a viagem da segunda dose. Novamente, fechei a página. Qual seria a diferença entre ir a São Luís, Miami ou Fernando de Noronha pra tomar uma vacina?, pensei sem querer e nem deixei o pensamento vingar.
O que não saía da minha cabeça era o aeroporto de Curitiba, ainda de madrugada. Eu chegaria lá passando frio numa temperatura de, no máximo, 10 graus. Se decidisse ir de última hora, teria que pegar o primeiro voo da segunda-feira pra estar na minha cidade a tempo. Pessoas de 29 anos que nasceram entre julho e dezembro seriam vacinadas à tarde, horário perfeito para a empreitada. No meio da manhã, faria conexão em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Brasília e ficaria esperando, sem comer ou beber água, o momento de pegar o voo que me deixaria em São Luís por volta das três da tarde. Desceria a escada rolante para o saguão do aeroporto torcendo para que ninguém da minha família estivesse na aglomeração em frente às portas automáticas. A gente ia relutar em se abraçar antes de chegar em casa, mas ia se abraçar mesmo assim.
Talvez no carro a gente concordasse que era melhor passar em casa, tomar um banho e comer alguma coisa antes de seguir para um dos pontos de vacinação. Eu subiria o elevador do prédio pensando que seria a primeira vez que entraria no apartamento sem ser recebida por Lucky, o poodle. Depois de pronta, com outra PFF2, eu checaria a situação do filômetro e optaria pelo local mais vazio, talvez fosse até aquele em que minha prima está trabalhando. Eu nem sei onde é que estão distribuindo mingau de milho na fila, teria que comer mingau de milho em outro lugar.
Onde quer que eu fosse, talvez encontrasse colegas dos tempos de escola que também fazem aniversário no segundo semestre. Seria incrível se eu esbarrasse com a minha amiga de infância que fazia aniversário no mesmo dia que eu. Sempre disputamos convidados em festas e agora dividiríamos esse momento histórico. Encontrar um conhecido na fila da vacina me deixaria mais à vontade com a situação. Eu não sei se postaria imagens nas redes sociais. Depois eu voltaria pra casa e talvez pedisse uma torta de camarão por delivery.
Todos os argumentos sobre ir ou não foram avaliados diversas vezes. Prós: ser vacinada, ver parte da minha família, passar mal de calor, comida maranhense. Contras: o risco de viajar, ter que voltar lá pra segunda dose, não poder ver toda a minha família, ter que enfrentar o restante do inverno curitibano depois de sentir um gostinho de calor. Eu gosto de pensar que não fui por causa de dinheiro. Um absurdo pagar tão caro na passagem nessas circunstâncias, grito mentalmente. Eu não fui porque a minha fantasia de turismo da vacina não conseguia ir além da torta de camarão. Setembro tá bem aí.
outras doses
[newsletter] #152 Queria ser grande, mas desisti -- Bárbara Bom Angelo escreve sobre ser adulto, virar adulto: "O que isso significa para você? É um termo conectado à idade? Você chega aos 18 anos e se torna adulto? Ou é um estado mental, uma mudança de atitude? É necessário romper com a dinâmica anterior, do lugar de onde veio?"
[newsletter] .flows magazine -- .solidão -- #03. meu estilo de solidão. terapia, ritual e autocuidado. passei café no corpo. o gravador do andy warhol. oito filmes e séries. Me encantei pelo estilo do texto e não faço ideia de quem é a autora da newsletter, o que só torna a coisa toda mais interessante.
[newsletter, em inglês] Episodes -- On Jealousy: Emily VanDerWerff escreve sobre essa sensação de tempo perdido, sob um viés de trabalho, antes de sair do armário como uma mulher trans. Não sei se é uma questão que se aplica a todas as carreiras. Talvez a discussão se encaixe mais no contexto da comunicação/jornalismo/escrita mesmo. De qualquer forma, é um texto muito interessante.
[sim, mais uma newsletter] Da janela -- Alquimia: a primeira edição da versão gratuita da nova newsletter de Isadora Sinay foi sobre a relação entre dois livros, Exciting Times (Naoirse Dolan) e Copo vazio (Natalia Timerman).
O meu impulso é puxar papo com um: tá frio, né? Mas se tem uma coisa que eu odiava quando morava em São Luís era esse papo interminável sobre o frio de outras regiões. Melhor recomendar essa matéria da revista New Yorker sobre mulheres que estão aproveitando o período de isolamento social para assumir os brancos, o que foi chamado de "cabelo do covid" (esse nome é péssimo). Vale a pena nem que seja só pra ver as fotos de Elinor Carucci.