Divisa entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul
#49 -- uma viagem de carro pelas pontes do Rio Paraná que acabou em obsessão por Salto de Sete Quedas
Crédito das imagens: Memorial de 7 Quedas, no site da Prefeitura de Guaíra.
Saindo de Campina da Lagoa, no centro-oeste do Paraná, observava as colinas com plantações recém-colhidas. A região é marcada pela alternância na produção de soja e milho. Via o descampado e não era capaz de identificar os resquícios de lavoura, me sentindo ignorante perto de quem falava com tanta desenvoltura sobre já terem colhido todo o milho. Milho, então. Faltava só passar a onda de calor para começar o plantio de soja. Precisa chover nos quinze dias depois de plantar, senão é prejuízo na certa. Pela janela do carro, olhava terreno após terreno, sem entender como tinham tanta certeza. Como sabiam que era milho?, enfim perguntei. Quando colhida, a soja não deixa o toquinho do caule. Só o milho.
Cheguei até Campina da Lagoa de ônibus, numa viagem noturna com direito a um pneu furado na parte mais escura do caminho, pouco depois de Guarapuava. A última paisagem que vi foi o centro de Curitiba. A matriz da cidade iluminada depois do expediente. No começo do dia seguinte, já estava do outro lado do estado. Apenas uma parada rápida para a jornada com destino a Dourados, a minha primeira ida ao Mato Grosso do Sul.
As viagens de carro eram mais frequentes na infância e na adolescência. Volta e meia, nas férias, a gente pegava o carro em direção a qualquer ponto da região nordeste, partindo de São Luís e quase sempre passando por Fortaleza, um passeio frequente. A saída era cedinho, e a passagem por Teresina, já no Piauí, se dava sempre nas horas mais quentes do dia só para confirmar a fama da cidade ser extremamente quente.
Gostava de reparar na mudança da vegetação na lateral das estradas entre o Maranhão e o Piauí. A seca dando as caras. Depois, as pedras do Ceará. Os diversos bares e lanchonetes de duas, três, quatro irmãs. Nas viagens com a família, sempre tinha algum CD tocando no aparelho do carro. Eu tinha o direito de escolher apenas um álbum no percurso. Tinha que ser uma escolha bem planejada. Chance única.
Só assim pra escutar Fallen (Evanescence, 2003) com a cabeça encostadinha na janela, vendo as paisagens do interior do Ceará, estado que demorava uma cara pra passar quando estávamos tentando chegar pros lados de Pernambuco. Quando não era a minha música que estava tocando, a trilha sonora era de Fagner, Zeca Pagodinho, Simply Red ou Bob Marley. Eu lia, tirava cochilos, arrumava o que fazer. Sem dispositivos eletrônicos, sem me preocupar com sinal de celular.
Na ida para Dourados, fui sem música, sem fone de ouvido, sem procurar distrações. Deixei o tédio me levar, sentindo o inchaço das pernas, consumida pelo calor e assustada com a vista opressiva ao redor. Apenas terra de plantio. Terra e mais terra entressafra. Haja toquinho de milho. Passamos por algumas cidades e distritos. O aparelho do carro sintonizava nas rádios locais, e eu escutava a hora exata, algumas músicas pop, bem menos sertanejo do que estava esperando. Lá fora, um ou outro barracão. Entradas para fazendas e estâncias. As árvores, quando despontavam, eram eucaliptos.
O gostinho de vegetação nativa que eu tive foi na divisa entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul. Atravessamos o complexo de pontes de Porto Camargo, que ligam os municípios de Icaraíma e Naviraí. Cinco pontes construídas sobre o Rio Paraná (o “Paranazão”), no território de um parque nacional que hoje talvez seja o último trecho livre de represamento no rio. Passando pelas estradas entre as pontes, vi uns dos poucos avisos de que animais silvestres poderiam cruzar o caminho. Ao redor, uma vegetação rasteira, de alagadiços. Uma prévia do que deve ser o pantanal.
O complexo de pontes tem 16 km de extensão. As que passam sobre o Paranazão foram projetadas para permitir a navegação no rio. Outras, menores, passam sobre canais. O caminho da divisa, numa sexta-feira comum, estava ainda mais calmo que o resto da estrada. Dali em diante, entraria no desconhecido, nunca havia me imaginado entrando no estado do Mato Grosso do Sul antes de ser convidada para o casamento. Sobre o Rio Paraná, me perguntava como teria sido a construção daquele empreendimento, inaugurado já nos anos 2000 para economizar litros de combustível no frete do agronegócio. Resisti à vontade de pesquisar sobre a construção ainda no carro, assim que me aproximasse de uma torre de celular.
Foi uma viagem de cansaço. O trajeto é longo desde Curitiba. O ar-condicionado do carro estava longe de dar conta da temperatura querendo bater recordes, o mormaço dilatado pela falta de árvores nos arredores da estrada. Em elevações do caminho, via um horizonte sem fim de fazendas, nenhuma mata à vista. Era como se estivesse no meio de um mapa. O carro seguindo o tracejado num território delimitado por linhas, uma superfície pintada de amarelo queimado. Horas de contemplação, vagamente lembrando dos prédios que me cercam em Curitiba, do paredão da igreja que rouba o sol matinal da minha casa, o cerco em comparação com a imensidão ao redor.
Em casa, refiz o trajeto pelo mapa, agora sim o mapa, no computador. Localizei as pontes sobre o Paranazão, passei pelo Parque Nacional Ilha Grande -- a explicação da vegetação preservada naquele ponto. Um parque pouco explorado pelo turismo. Discreto, misterioso. Relativamente jovem. Cismei com o que li sobre aquele ser o último trecho livre de represamento no Rio Paraná. O que tinha para ser preservado na região está submerso. Abaixo de águas represadas. Salto de Sete Quedas, no município de Guaíra/PR, foram as maiores cachoeiras do mundo em volume de água até a sua submersão completa com a abertura das comportas e a formação do reservatório de Itaipu em 1982. Entrei em luto por um conjunto de cachoeiras de que nunca tinha ouvido falar até a semana passada.
Últimos anos da ditadura militar brasileira. Sim, é claro, havia outras opções de hidrelétricas que não acabariam com as cachoeiras na fronteira com o Paraguai. Duas turbinas a menos em Itaipu, quem sabe. Mas aí não seria a maior do mundo naquele momento, numa época de maiores, melhores e superlativos. Ponte Rio-Niterói. Usina de Angra dos Reis. A audácia do slogan “Visite antes que a acabe”. A horda de visitantes que queriam conhecer as quedas antes de seu desaparecimento. Eu também teria dado meu jeito de ir.
O encerramento de um parque nacional que não deu conta de proteger sua principal atração. Milhares de hectares alagados em doze dias. Terra vermelha, terra roxa, roja. Indígenas expulsos de suas terras. Animais que não foram resgatados. Colonos sem indenização. Sítios arqueológicos não explorados. Efeitos apenas secundários. O acidente numa ponte de travessia sobre as cachoeiras. 32 pessoas mortas. O circuito do finado parque era feito em pontes pinguelas sobre as cachoeiras. Pinguela, um nome bem melhor para ponte pênsil. Ah, o turismo nos anos 80. Um poema-adeus de Drummond. Dez anos de planejamento. Sem tempo para programar sequer o resgate dos animais. Os morcegos, pequeninos, que habitavam cavernas na área dos saltos invadiram casas de Guaíra nos três dias seguintes ao alagamento. Não viram a tempo o aviso nos jornais? Saiam daqui antes que acabe.
Um festival de despedida para as quedas d’água. Um festival nomeado Quarup em referência ao ritual mortuário do Alto Xingu. Quarup como aquele livro de Antonio Callado que não li no exemplar fantasma da biblioteca central da UFSC, que aparecia no sistema e não existia na prateleira. O outro exemplar comprado num sebo, ainda assim não lido. A desistência de uma disciplina optativa noutro curso só pra mudar de ares.
Comparado a Woodstock, um festival que não pretendia protestar contra Itaipu, contra o desaparecimento das cachoeiras. Em tempos de ditadura, a decisão já estava tomada. Não havia o que se esperar de uma eventual pressão pública contra o alagamento. A Usina Hidrelétrica de Iguaçu Binacional necessária para o progresso do país. Até porque temos o exemplo de Belo Monte em tempos mais recentes. De que adianta a pressão pública. Mas isso não aconteceria aqui perto de Curitiba. Não, não no Paraná. Ou aconteceria justo aqui, no estado que perdeu parte de seu território, mais de trinta por cento das terras de uma só cidade. E o vislumbre dos saltos, décadas depois, na seca de 2013. Uma pontinha dos cânions à mostra, esticando o pescoço para mostrar que estão ali.
Antes mesmo de conhecer as Cataratas do Iguaçu, ouço que elas não eram nadinha perto dos Saltos de Guaíra. Do outro lado da fronteira do rio, a cidade paraguaia se chama Saltos del Guayrá. E hoje quem que é Guaíra no mapa. Guaíra, do guarani intransponível. Nessa viagem senti que me embrenhei pelo Paraná. Não uma fuga para São Paulo, nem para Santa Catarina. E ainda assim de passagem para outro lugar. Foi quando me senti curiosa, instigada por uma paisagem que alardeava o desmatamento, o alagamento. Agora sinto a falta desse cenário que não vou conhecer, que provavelmente vai me acompanhar quando um dia passar por Foz do Iguaçu. Uma relação que começa a ser definida também pela ausência.
mais doses
A obsessão com a história de Salto de Sete Quedas (nome sem compromisso com a quantidade de cachoeiras) começou com a dissertação LAGO DE MEMÓRIAS: A submersão das Sete Quedas, da pesquisadora Ana Paula Santos. E terminou (não necessariamente terminou) com o podcast de três episódios Desbravando Quarup Sete Quedas, de Diego Zerwes.
Pra continuar no tema, comecei a ler Cidades afundam em dias normais (Aline Valek), sobre uma cidade do Cerrado que reaparece após anos submersa no fundo de um lago.
Dois filmes chilenos que vi no feriado:
1) o documentário Nostalgia da luz (Patricio Guzmán, 2010 -- encontrei completo no Youtube), uma conexão entre os observatórios de estrelas no Deserto do Atacama e as viúvas da ditadura que procuram restos mortais de desaparecidos na região.
2) a sátira sobre a figura de Pinochet no filme El Conde (Pablo Larraín, 2023 -- disponível na Netflix). O ex-ditador é um vampiro de 250 anos cansado de viver, e seus cinco filhos simulam um episódio de Succession em plena Patagônia para dividir já a herança da corrupção. Não deixa de ser uma prestação de contas com o passado. Nota 10 para a narradora inglesa. E nunca mais vou ver o ají chileno da mesma forma.
Inventário de atravessamentos (ou: uma descoberta em 13 fases) na newsletter
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Navegando nos silêncios dos encontros do passado, Lidy escreve sobre o filme Past Lives (2023), de Celine Song, na
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Uma imagem do Museu 7 Quedas, no prédio construído no início do século XX pela Companhia Matte Larangeira, colonizadora do Município de Guaíra.
Agora eu tô em luto também por uma paisagem que eu nunca soube que existiu. Que coisa mais triste imaginar um ecossistema colossal desses sendo destruído, alagado, sem direito à proteção
Quando as Sete Quedas desapareceram eu tinha 2 anos, mas o acontecimento e toda a mística em torno da história sempre fez parte do imaginário da minha infância.