Nuvens baixas sobre a cabeça. Duas amigas passam as férias de verão confinadas às poucas ruas do bairro onde podem circular livremente. No romance Pança de burro, o bairro fica em Tenerife, no arquipélago das Ilhas Canárias.
O desejo comum é descer à praia, onde o sol se dispersa das nuvens, caindo sobre o mar. Não podem sair, nem ir muito longe. As ruas conhecidas ficam na descida de um vulcão. Subida e descida.
Nenhum dia de sol. Tempo nublado, mormaço, sufocante. Poucos raios solares escapam das nuvens. Imagino o calor grudento, o vento que não corre, as horas paradas.
Na leitura, grifo todos os trechos sobre o efeito climático que nomeia o livro e domina a vida cotidiana dessas meninas. E o ambiente aparece bastante nas páginas. Separei dois trechos:
“Era quarta-feira e por todos os lados se viam pedaços de vulcão atrás dos retalhos de nuvens que iam deslizando por dentro dos pinheiros. A capa de nuvens era espessa, mas ventava tanto que às vezes o sol escapava pelas frestas do branco e nos acariciava os ombros.”
“Nem um só dia de todos em que estávamos sem ir à escola tinha feito sol, as nuvens eram como um trinco fechado no céu, um trinco enferrujado impossível de abrir.”
*
Aqui, na rotina de escritório, são poucas as janelas da sala. A vista para o lado de fora do prédio é um para poucos.
Inverno em Curitiba. Tudo hermeticamente fechado como os melhores potes de marmita vendidos na shopee. Diferentes respirações fechadas num mesmo lugar. A tarde inteira.
Sou um molho de tomate espirrando pingos vermelhos nas paredes do microondas quando o ar-condicionado é ligado no modo quente, aos vinte e cinco graus. Até o microondas para de funcionar. Logo compram outro.
Eu me pergunto se é essa a temperatura ideal para um ambiente de trabalho. A simulação de um ônibus lotado, no horário de pico. Um calorzinho gostoso de praia enquanto as pessoas vestem meias grossas e suéteres.
Entrar num ambiente fechado já me trouxe alívio. Volto aos anos de formação, então estou em São Luís e fujo do sol quente para me refugiar em qualquer birosca com ar-condicionado. O prazer do choque térmico. O vento gelado ameniza a ardência da pele fritando no calor. A brisa artificial revigorante.
Agora não tenho nada disso. O ar quente rouba o oxigênio do ambiente, me tira o ar. O suor aparece por dentro de uma blusa de manga comprida que vesti apenas por cima do sutiã. Como naquela cena de Fleabag.
Nos dias mais frios da estação, motoristas de aplicativo me recebem com as janelas do carro fechadas. Estão só de camiseta. E eu entro portando duas ou três camadas de roupas térmicas. As lojas reproduzem temperaturas maranhenses. As pessoas caminham sob o sol do meio dia, na avenida em que os edifícios envidraçados refletem o calor no concreto, e ainda se recusam a tirar o casaco.
Que apego é esse às japonas?
Esse povo gosta é de sentir calor?
*
Não pensei que gostaria tanto do mundo exterior em pleno inverno. Apesar da fumaça que chega de outras regiões pesando o tempo, se juntando à fuligem dos carros.
E a smog de Santiago, um patrimônio da capital chilena, com seus alertas climáticos e o alívio que a chuva traz para a cidade.
Sinto falta das saídas das aulas noturnas e do vento frio que batia vindo de um pedaço de mata fechada perto do campus. De passar frio nas salas sucateadas de um departamento de antropologia. Do vento da Beira-mar de Florianópolis.
Acostumar a sentir o frio na pele. Repulsa ao calor.
*
E, agora, outro tipo de confinamento. Outra sala de aula. Poucas janelas. Não posso sair, não ainda. Faço a conexão entre o livro da panza de burro e a falta de ar que sinto na firma.
O mar de nuvens comprime duas meninas em férias de verão. O sufoco de trabalhar num local sem ventilação natural, nem artificial. As brigas de ar-condicionado.
Aguardava o momento em que poderia sair da sala com a cópia do gabarito. Fiz o primeiro rascunho deste texto no verso de um caderno de provas que não poderia sair dali comigo. Penso no futuro daquelas páginas. Talvez sejam incineradas. Não faço ideia se um papel tão vagabundo e riscado de caneta pode ser reciclado e, de fato, reaproveitado pela indústria.
Vejo as chamas que destroem as folhas. Sinto o calor daqui.
“O céu era todo de nuvens e terra. Eu às vezes pensava que nós eramos os culpados por toda essa terra flutuando no ar: a camada de nuvens negras que tapava o céu não deixava fluir a nossa respiração e o ar ia se tornando pesado até que começávamos a ficar sufocados.”
mais doses
a doses de tiquira está voltando aos poucos. por isso, envio este e-mail na finaleira de domingo.
um livro que adorei nesse meio tempo: Boulder, de Eva Baltasar (na tradução de be rgb e Meritxell Hernando Marsal). isso de ler traduções do Espanhol, fora da América Latina, é uma novidade pra mim. inclusive, li Pança de burro, de Andrea Abreu, na tradução de Livia Deorsola.
dois shows marcantes em Curitiba: Juliana Linhares com Josyara no Teatro Paiol, em julho, e Helio Flandres (do Vanguart), nesta última sexta-feira <3
a temperatura do ar em ambientes coletivos é sempre um problema.
Eu tenho sofrido muito de estresse climático. Está cada vez mais difícil sentir o conforto térmico. Fico pra estressada, ora apática e me questionando se meu corpo é capaz de se adaptar ao fim do mundo.