Cientista contábil
#20 -- a vida dupla de uma ex-jornalista; trate bem seu contador; não faço imposto de renda no momento
A figura do contador não é das mais carismáticas na ficção (e na vida real). Trabalhar com contabilidade pode ser um ponto negativo na hora de avaliar o caráter de alguém. Como na série Jane the Virgin, quando a protagonista reclama do noivo sem graça de sua melhor amiga: “é que ele é CONTADOR, sabe”. Um tédio.
No filme mais recente do Batman, investigadores ficam abismados quando descobrem que o vilão trabalhava no setor de contabilidade de firma. Justo na contabilidade! Como se em toda a classe não existisse uma só pessoa com um passado interessante o suficiente para tramar um plano contra alguém por vingança.
Vejamos um caso de novela das nove. Em Lugar ao sol, havia um único funcionário trabalhando no fechamento contábil de uma rede de supermercados inteirinha quando o mocinho precisava acessar o sistema financeiro da empresa para mascarar mais um desvio de verba feito pelo seu cunhado chantagista. A isca jogada ao contador foi a seguinte: vá para o aniversário de seu neto, deixe que eu (um executivo de alto escalão e sem conhecimento para exercer o ofício) finalizo a contabilidade mensal da empresa. Acontece todo dia, em toda empresa. Quem nunca saiu do trabalho mais cedo e deixou o chefe terminando seu serviço operacional?
A redenção da imagem do contador foi uma promessa do filme de ação em que o Ben Affleck é um 007 da contabilidade: O Contador.
Não consegui passar da cena em que o protagonista lê páginas e páginas de livros contábeis impressos num tempo em que computadores já existiam. Faça-me o favor. Toda genialidade tem limite. Não vi uma planilha sequer antes de cair no sono logo no início. Desse jeito não dá, sabe. Os órgãos internacionais de contabilidade deveriam ter se manifestado. Planilha é a linguagem de amor de todo contabilista.
Comecei a pensar no meu percurso contábil ao passar pela cerimônia emocionante da minha colação de grau online que consistiu em 1) entrar no sistema de alunos da universidade; e 2) assinar dois documentos de forma digital (clicando no botão “Assinar”).
Depois de anos de aulas noturnas, jantares no Restaurante Universitário e uma finaleira de curso no ensino remoto, é difícil me reconectar com o meu eu do passado que, sufocada num quarto minúsculo no centro da cidade de São Paulo, decidiu largar o jornalismo de vez e voltar à universidade. Fui parar na contabilidade procurando por uma profissão careta mesmo.
Mas será que a rotina de um contador é realmente tão mais chata que a de outros trabalhos? Sabe, já passei horas e horas de serviço enviando manchetes de notícias por mensagem de celular. A concorrência não é fácil.
Talvez você esteja se perguntando: o que diabos faz um contador durante o ano inteiro se a declaração de imposto de renda acontece apenas uma vez, sempre no primeiro semestre?
Toda empresa ao seu redor é obrigada a ter registros contábeis feitos por contadores. O seu restaurante a quilo preferido, o revendedor daquele site de vendas onde você comprou o bebedouro dos gatos, aquele seu amigo PJ que passou do limite de faturamento anual do MEI, toda essa galera. Esses registros se tornam os relatórios que mostram o prejuízo bilionário de startups que continuam recebendo aportes de investidores.
A atividade do contador é uma travessia entre passado e presente, sendo que o presente é sempre um mês atrás. Uma travessia entre o passado mais antigo e um passado recente. Posso fechar a contabilidade de abril de uma empresa sem ter terminado a contabilidade de 2021 de outra. É confuso assim mesmo.
Na prática, eu passo boa parte do meu mês implorando para que pessoas me enviem os extratos bancários de todas as dez contas que a empresa resolveu abrir em bancos diferentes. Sabe quando você resolve dar uma olhadinha nas finanças e nem prometendo aos deuses novos e aos deuses antigos você consegue se lembrar por que gastou 13 reais no estabelecimento José Antônio dos Santos na tarde de uma terça-feira? Agora imagine fazer isso pra toda a movimentação de uma empresa. Beira um trabalho de investigação.
O sentimento por aqui é de ter uma vida dupla. Fazendo um trabalho burocrático e necessário durante o dia, fazendo o que eu quiser depois de bater o ponto. Com o distanciamento suficiente para gostar do serviço e conseguir me desligar no tempo livre. Sem fazer alarde, aproveito para corrigir erros de digitação nos nomes de contas contábeis nos relatórios mensais. Pelo fim do “Contas a apagar”.
outras doses
Cabelo-nuvem -- O caminho da artista: relato em quadrinhos da Jana Esmeraldo sobre fazer O caminho do artista. Também tem esse papo de vida dupla entre trabalho e tempo livre.
babi carneiro -- ao sul do escritório: texto sobre Severance que me deixou morrendo de vontade de começar mais uma série sobre trabalho.
Até esse momento não tinha notado o quanto o trabalho contábil é estereotipado kkk. Eu trabalho com o setor fiscal e paro para refletir, e chega a ser engraçado, pois é um serviço rotineiro mas nem de longe é tão chato como pintam. Tenho que exercer muito a criatividade pra resolver pepino de cliente e validar Speds 🙃
nossa, texto muito interressante sobre os contadores.
sou um contador também e, sim, nós somos muuito chatos, certinhos, burocráticos, vidas monótonas.
o maior elogio que eu posso receber é que não 'pareço' um contador rs
abraços