Carambolas
#57 -- um ingresso de cinema perdido; uma viagem inesperada e o luto pela minha avó (parte 1)
1
Caminhei até o cinema para ver a matinê do filme Vidas passadas. Era uma tentativa. O ingresso que carregava no bolso era para a sessão do dia 3 de março, dois domingos antes daquele. De todo jeito, não consegui entrar. O sistema não permitiu a alteração de datas. O ingresso, guardado com cuidado, já não valia nada. Aceitei as respostas, sem discutir.
Voltei pra casa. Baixei o filme em poucos minutos e comecei a ver a história sobre o reencontro de amigos de infância e as possibilidades do destino. Quem somos e quem poderíamos ter sido. Uma cena marcante do longa é a separação desses dois amigos que, na última vez que voltam juntos da escola, se separam e seguem direções diferentes. A tela se divide em dois caminhos.
Estive pensando sobre temas parecidos nos últimos dias, justo pelo motivo que me fez perder a sessão de cinema planejada com certa antecedência.
Três dias antes da sessão, com a entrada já comprada, minha irmã me ligou para dar notícias da internação da nossa avó materna. A pergunta que eu relutava em fazer tinha que ser sair naquele momento. Tu acha que eu devo ir?
Horas mais tarde, fiz a mesma pergunta para mamãe. Ela hesitou, passou alguns segundos em silêncio antes de encerrar o assunto com um: venha, minha filha.
Aos poucos, percebi que a relutância em comprar as passagens era fundada na ideia de que ir a São Luís, tão em cima da hora, significaria que uma tragédia iria acontecer. Se eu vou até lá, minha vó morre. A chegada repentina como uma confirmação de que a situação era séria. Mas eu precisava ir. Comprei as passagens e embarquei para São Luís poucas horas depois.
O percurso Sul do Brasil - Maranhão é uma constante de vida há quinze anos. Um trajeto que já foi mais frequente quando as tarifas eram mais baratas. Sem contar que, no início, contava com a folga das férias universitárias, oportunidade para dar um pulo em São Luís. Na verdade, não tinha uma conexão com a cidade onde morava. Os outros estudantes iam para a casa de suas famílias e pouco me restava no lugar, então a única opção era passar um tempo fora também.
Na falta de um voo direto, enxergava essa peregrinação por aeroportos como uma aventura juvenil. Estava preparada para que algo fora do comum acontecesse comigo a qualquer instante, em qualquer cidade do país. Havia a sensação de independência, o que me fazia sentir uma pessoa interessante. A expectativa era bem diferente naquele sábado de março, fazendo uma viagem inesperada.
Comecei a reler Paula, de Isabel Allende, no voo até São Paulo. Esse é o primeiro livro que me vem à cabeça quando penso em luto e despedidas familiares. Meses antes, quando minha tia faleceu depois de algumas semanas internada, pensei nos contos de Alice Munro. Tentei encontrar uma história específica sobre uma mulher que faz visitas a um paciente durante várias semanas. Ou pode ser que a personagem fosse enfermeira, acompanhando um paciente que não recebia visitas, não sei bem.
Buscava narrativas de hospital porque não consegui visitar titia. Não encontrei exatamente o que procurava. Li, resignada, o conto “As luas de Júpiter”, sobre uma filha que vê o pai no hospital antes de uma cirurgia e reflete sobre a possibilidade de perder um familiar pouco presente em sua vida. Na ficção, o procedimento é bem-sucedido, um absurdo diante da minha perda recente. Desisti de continuar atrás do conto.
A caminho de ver a minha vó no hospital, pensei de imediato no livro Paula. Te escribo para que cuando despiertes no estés tan perdida, um início que demarca a então relutância de uma mãe que não queria deixar a filha partir. O livro é derivado de uma carta. Deveria escrever uma carta para Vó Rita? Mas o que teria a dizer a ela? Há anos eu gostaria de saber o que ela teria a me dizer. Gostaria de conhecê-la melhor, de saber o que se passava na cabeça de uma senhora de mais de noventa anos.
Tirei os óculos e chorei em todo o voo, tentando não fazer barulho. Não queria deixar minhas companheiras de fileira ainda mais desconfortáveis com a cena. De um lado, na janela, uma mulher que devia ter a minha idade tirava fotos de si, parecia animada com o deslocamento. Do outro, no corredor, uma senhora de mais de setenta anos que eu evitava com o olhar. Não teria condições de começar a fazer comparações entre ela e a minha vó.
Em Guarulhos, nas horas de espera em conexão, bebi um canecão de chopp e senti vontade de escrever. Abri o caderno e dei de cara com o ingresso de Vidas passadas para a sessão do dia seguinte. O ingresso comigo, e eu indo para outro canto do país.
O segundo voo acabou com toda a esperança de continuar chorando a ponto de não enxergar mais as palavras do livro. Encontrei uma pessoa conhecida justo na poltrona ao lado. Na janela, lá estava o guia que me acompanhou na travessia dos Lençóis Maranhenses, dez anos antes. Coincidência fora de hora. Passaria as próximas três horas e meia ao lado de uma pessoa semi-conhecida. Estava chegando.
2
Foi uma simples queda. Dona Rita caiu no próprio quarto. Não se sabe ao certo como aconteceu. Ela estava sozinha. O que se sabe é da fratura no fêmur, da imobilização da perna direita, da internação no hospital, da dor que ela teve que suportar. Vovó era uma idosa que se movimentava. Fazia questão de nos acompanhar até o portão de casa. Carregava a memória dos anos de serviço doméstico, sempre com um paninho de limpeza na mão.
O envelhecer se manifestava na dificuldade de se comunicar. Pouco entendia o que ela me dizia. Ela também não me entendia, então estávamos quites. Vó Rita falava de São Bento, a cidade de onde veio a minha família, com o apego a um lugar para o qual ela nunca quis voltar.
Fui lá apenas uma vez. Visitei o sítio da infância de mamãe. Era a primeira vez que uma das minhas tias voltava para a cidade e ela chorava, desolada, quando certos lugares faziam surgir memórias desconfortáveis. As lembranças que tenho dessa viagem são o pranto da minha tia e o ladrilho hidráulico que reparei na casa do sítio quando os atuais moradores nos deixaram entrar.
A chegada em São Luís coincidiu com o horário de visita da UTI e fui direto ao hospital, com a mesma roupa da viagem. Até estranhei, pensando no risco de contaminação. Estava prestes a descobrir que as regras de uma unidade intensiva podem ser bastante maleáveis.
Não fazia ideia do que iria encontrar. Detrás das cortinas de um canto reservado, Vó Rita estava melhor. Os cílios dela pareciam tão escuros, contrastando com os cabelos todos brancos, debaixo da luz forte do hospital. Alguém deu uma desculpa esfarrapada para justificar minha presença ali. Pedi a benção, algo que eu nunca costumava fazer.
No dia seguinte, o domingo em que deveria ver Vidas Passadas, passei a tarde na UTI, escondida entre a touca descartável e a máscara cirúrgica. Observava o sono de minha avó e percebi que ela murmurava alguma coisa. Cheguei mais perto e entendi: agora e na hora de nossa morte, amém. O finalzinho de uma Ave Maria repetida por horas e horas.
A família se revezava. As filhas na casa dos cinquenta e dos sessenta, sem a menor condição de passar tanto tempo naquela cadeira dura e barulhenta. As netas, todas na casa dos trinta. Eu que chegava, outra que estava indo embora e as que sempre estavam ali, presentes. A primeira noite que passei no hospital foi em claro, segurando a mão de vovó para que ela não arrancasse o catéter do oxigênio ou a sonda da alimentação. Nunca tinha passado tanto tempo de mãos dadas com ela. Que força naquele aperto.
A vigília foi tão cansativa que decidi assumir todos os turnos noturnos daquela semana. Não foi simples escolher uma data para a volta. A lógica do transporte aéreo me obrigou a comprar os dois trechos. A decisão de voltar depois de sete dias foi arbitrária. Uma esperança de que a situação não se prolongasse muito. A consciência de que ficar lá mais tempo não ia mudar tanta coisa. O mínimo que eu poderia fazer era assumir todas as noites para poupar quem ia ficar depois.
Nas madrugadas seguintes, me adaptei à rotina da Unidade de Terapia Intensiva de nível 1. As trocas de plantão, os sons dos aparelhos, o volume alto da televisão e o café da manhã da acompanhante que sempre chegava na hora da troca de fralda. Vovó continuou a melhorar. Conversava do jeitinho dela. Queria colocar um sapato e descer da cama pra tomar um café na mesa da cozinha. Reconheceu minha irmã, a neta com o nome mais diferente. Rezava como se estivesse meditando.
Certa manhã, adormeci profundamente na cadeira, devo até ter roncado um pouquinho. Abri os olhos no susto, paralisada pelo cansaço acumulado e pelo frio inacreditável de uma sala de hospital em São Luís do Maranhão. Vovó me observava pelas frestas laterais da maca. Deu risada quando me viu acordar toda desajeitada.
A experiência de acompanhante, ainda que uma exceção, acabou de vez com uma ideia que eu tinha sobre mim. Algo que evitava olhar de perto: me via como uma neta que decidiu escapar das responsabilidades de cuidado na família. Como se a decisão de ir embora tivesse apenas essa explicação. Pior, pensava que, se tivesse ficado, teria dado um jeito de manter o distanciamento.
Que ainda assim nunca teria ido buscar uma receita de remédio, passado na farmácia, comprar um pão quentinho pra ela. Na minha família, levar a minha vó para as consultas médicas era um destino natural para toda e qualquer pessoa que tirasse a carteira de habilitação. Mas eu não estava lá, nunca fui sua motorista.
Fui embora da cidade antes mesmo de completar dezoito anos, e a relação que já não era próxima começou a minguar sem a convivência. Dona Rita atendia ao telefone a contragosto, direcionando a conversa para uma despedida. Logo as interações cara a cara se tornaram conversas superficiais sobre o frio de onde quer que eu estivesse morando, seguidos de incentivos recorrentes para que a gente continuasse estudando, trabalhando, buscando uma independência que ela sempre valorizou. Tem que estudar mesmo, dizia.
A nossa despedida foi no horário de visitas num final de tarde, horas antes do meu voo de volta para Curitiba. Vovó fingia que dormia. Abriu os olhos, um tanto contrariada, quando comecei a falar com ela. Subi primeiro, depois veio a minha mãe. Só eram permitidas duas visitas por vez. A minha irmã teve que ficar na recepção. Foi o único momento que tivemos para nós três: eu, minha mãe e minha avó.
obrigada por ter lido até aqui!
estou tentando acabar com esse hiato inesperado. quanto mais fico sem escrever, mais difícil é a retomada. volto aos dias originais da newsletter, às quintas-feiras, para ver se a coisa anda.
na semana que vem, mando a segunda parte do texto Carambolas. não quis reaparecer com um e-mail tão longo.
Que lindo texto. Você quebrou em partes para não pesar a mão na gente, mas acertou em me deixar na beirinha da cadeira querendo a continuação. Sinto muito pela sua vó, o luto nunca é simples em nossas relações, sejam elas próximas ou afastadas. .Que bom que você fez uma visita nesse meio tempo! Na agitação do dia-a-dia, pode ser difícil tomar essas decisões, mas com certeza foi uma prioridade acertada. Abraço! <3
a gente se despede de tantas formas não é mesmo? Meus sentimentos Luisa <3