Breve relato de viagem: Ilha de Superagui
#56 -- uma edição especial com doses de cataia
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Ônibus até a cidade de Paranaguá. Barco até a Ilha de Superagui. A voadeira sai pelo canal do trapiche, pega o desvio ao lado do porto internacional, segue pelo mar aberto e passa por outras ilhas até chegar na beirada do mar de Superagui. Um percurso de mais ou menos uma hora. Na ida, só não me assusto com a maré agitada porque estou de costas para as ondas. Apenas sinto o frio na barriga de um choque mais brusco entre as águas.
Viajo pensando no isolamento da ilha. Nesta temporada, são apenas dois horários de barco para ir e voltar. Chego na praia e evito invadir o espaço alheio. Venho com respeito, estou aqui para descansar, não investigar. O visitante fica ali na vila principal, na beirada da praia. A Barra de Superagui é uma linha de pousadas, campings, restaurantes e mercadinhos que vendem gelo em garrafa de 2 litros d’água para você quebrar com um martelo posto à disposição.
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Antes da viagem, li sobre a vida de um imigrante sueco que se estabeleceu na colônia recém-inaugurada em Superagui no século 19. William Michaud foi um pequeno agricultor. Plantou café, produzia vinho. A colônia inteira, formada principalmente por estrangeiros, não deu muito certo. As cartas enviadas para as irmãs, na Suíça, mostram a mudança da visão dele sobre o Brasil e sobre a decisão de vir para cá. O entusiasmo inicial logo se transformou numa satisfação modesta. Nos últimos anos, amargura e arrependimento.
Michaud chegou em Superagui aos 25 anos e, mais tarde, classificou a aventura como uma ‘tolice motivada pela juventude’. Além das cartas, deixou pinturas e desenhos que retratam o cotidiano e o meio ambiente no início da ocupação do local. Nos relatos mais populares, a história se acelera depois da decadência da colônia e chega ao desenlace de uma Superagui atual, marcada pelo turismo. Uma lacuna de como foi desenvolvimento da vila até se tornar um destino de verão para quem quer fugir das praias lotadas de curitibanos em suas casas de veraneio. O Parque Nacional só foi criado em 1989.
Tentei ver as pinturas e aquarelas de William Michaud antes de sair de Curitiba, sem sucesso. As obras faziam parte do acervo do extinto Museu de Artes do Paraná (MAP), agora sob custódia do Museu Oscar Niemeyer (MON), também conhecido como Museu do Olho. Digo que estão sob custódia porque não podem ser visitadas pelo público geral. Nas redes sociais, me incomoda uma postagem em que o museu dá destaque às pinturas de Michaud como as obras de artes paranaenses mais antigas de sua coleção. Nem existe espaço para uma exposição permanente mesmo. Tão pequeno o espaço do museu. Como se fosse suficiente conhecer os desenhos pelas reproduções na internet.
O sobrenome Michaud aparece numa sorveteria em ruínas e numa pousada que só vi de portas fechadas. Prefiro pensar que os hóspedes saíram cedo para a praia. A verdade é que logo depois da virada do ano, o número de visitantes reduz de forma significativa, como uma baixa temporada.
Os quadros que permanecem no Brasil bem que poderiam ser devolvidos ao local onde foram pintados. Parte deles está na Suíça. Michaud desenhava como uma forma de mostrar às irmãs onde tinha se metido. Imagino como seria o transporte marítimo das obras de volta à ilha e me lembro daquela cena do filme Retrato de uma jovem em chamas. Bem no começo, uma caixa com as telas em branco cai no mar, e a pintora precisa se jogar na água para resgatar o material que vai usar para fazer o retrato da donzela. Quando cheguei ao Paraná, eu também tinha 25 anos.
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O bar mais famoso da ilha é o Akdov. O nome quer dizer ‘vodka’ ao contrário. Uma casa de madeira, cercada por murais coloridos nas paredes e mesas rústicas dispostas numa pequena praça. O melhor lugar pra tomar uma dose de cataia. Ou o drink de cataia com caldo de cana, uma novidade por lá. Pelo menos disseram que era novidade, vai saber o que contam pra visitante de primeira viagem. A cataia é uma planta que dá em arbusto, nativa da Mata Atlântica. O uísque caiçara. Cinco reais a dose em janeiro de 2024.
Sábado passado, saí no pré-carnaval de Curitiba e estava com uma amiga que produz e vende cataia. Foi um choque perceber que tanta gente ali não fazia ideia de que cataia é uma cachaça paranaense, com origem em Superagui. Pensava, no mínimo, que seria como a tiquira lá em São Luís. Que as pessoas até podem não ter ideia de como e onde a cachaça tem sido produzida, mas sabem que existe e conhecem uma ou outra lenda popular sobre ela.
Na primeira vez que vi essa amiga depois da viagem a Superagui, enfim perguntei por que ela tinha começado a produzir a própria cataia. As primeiras folhas para curtir na cachaça ela recebeu de seu Laurentino, o dono do Akdov. O mesmo senhor que prometeu que haveria apresentação de fandango na primeira sexta-feira do ano e que só foi acontecer no sábado, com a casa lotada. Cinco ou seis homens, jovens e velhos, com violas, pandeiro e voz. Algumas crianças dançando em roda para depois ganhar um copo de refrigerante. Um dos meninos marcando o ritmo com um tamanco de madeira.
Embalada pela cataia, a noite terminou com um mergulho no mar para observar os plânctons bioluminescentes. Os espirogiros, ou spirogyra, pegando o termo emprestado da música de Jorge Ben Jor. No litoral, o fenômeno é conhecido como ardentia. Usar a palavra observar dá a ideia de estado de contemplação, que as luzes aparecem na sua frente, basta esperar. É com a agitação da água que o brilho verde-azulado aparece. Ardentia, fosforescência do mar.
mais doses
- William Michaud: Sonhos, Conquistas e Memórias (Nilva Lichtsteiner Fogaça) -- um livro bem diagramado com contexto da colonização em Superagui e trechos das cartas de Michaud.
- Para tomar cataia em Curitiba, deixo a dica da cataião: 🥃cachaça de alambique + infusão de cataia 🍂
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adorei! querendo muito conhecer esses lados.
Que delícia de texto. Conheci a cataia e o fandango na Ilha do Cardoso e acho que essa combinação tem algo de mágico e medicinal, rs! Foi lá que, depois de uma trilha de horas e horas, voltei a mergulhar em água que não dá pé. Superagui tá na lista de desejos há anos e ler seu relato colocou essa viagem em caráter de urgência ♡.