As pessoas ainda se casam
#15 -- o salto, uma versão dos bastidores; alerta de texto sentimental; não consegui pegar o buquê (há quem diga que nem tentei)
As pessoas ainda se casam. Com véu comprido arrastando no chão, com arranjo de flor na lapela de um terno azul. As pessoas se casam em chácaras distantes do centro da cidade e contratam serviços de entrega expressa para garantir que os convidados vão chegar a tempo da cerimônia. As pessoas se casam em dias de chuva intensa. No caminho, observar o mundo caindo pela janela da van, com direito à chuva de pedra, faz parte do roteiro turístico. Cinco quilômetros finais em estrada de terra para chegar ao salão de festas ameaçado de alagamento. Sorte do dia: você está de sapato fechado.
Antes do casamento, você ainda precisa escolher uma roupa pra usar. Mas não muito antes, convenhamos, você não é a noiva. Aproveite a oportunidade para decidir se você ainda é alguém que usa vestidos em casamentos. Não é? Tudo bem. Lembre que sua fama com compras pela internet não é das melhores. O sapato dá certo. O conjunto de calça e blazer fica no limite. O segundo botão da calça só fecha depois do terceiro dia de menstruação. Agora boa sorte com a camisa. Só te resta zanzar pelo shopping perto do seu trabalho na semana do casamento, tendo que ouvir de vendedor-de-loja-de-alfaiataria “mas para qual evento Ele vai?” como se você estivesse procurando uma camisa social para Deus.
As pessoas se casam em tempos de pandemia. Em tempos menos piores de pandemia, você pensa, e decide correr o risco. Faz o seu segundo exame desde março de 2020 e, durante o evento, deixa na máscara metade da base para o rosto que você comprou especialmente para a ocasião. Na ressaca do casamento, você precisa lidar com essa nova versão de si que não sabe mais contar uma história no meio de uma roda de pessoas que você não conhece direito. E até no meio das pessoas que você já conhecia antes do isolamento.
Você se lembra de como as pessoas gostam de repetir os feitos-da-noite-anterior. Parece que até agora, naquela chácara afastada, dá pra ouvir uma voz contando sobre o cantor da banda que tropeçou na cortina da cozinha, quase quebrou o braço e perdeu um dente. Ou ralou o cotovelo e lascou a pontinha do dente da frente, vai saber.
As pessoas que você conheceu na internet se casam com pessoas que elas conheceram no Tinder, e pelo menos uma centena de pessoas celebram a existência de um aplicativo de relacionamentos como se ninguém ali nunca tivesse vivenciado um encontro desastroso. As pessoas da blogosfera se casam e você vê toda uma seção de comentários da internet dos anos 2000 personificada na sua frente. Antes eram nomes e fotos pequenas que te deixavam mensagens como “adorei seu blog!”. Agora são pessoas da vida real, montadas como num doll maker precursor da rede brasileira de computadores.
A cerimonialista liga o microfone para ler um trecho de uma das crônicas mais bonitas que já foram publicadas na Capricho desde que você começou a ler a revista no ensino fundamental e até o seu segundo ano de faculdade (no caso, todo o período em que você acompanhou a publicação). Aquela crônica que você guarda até hoje num recorte colado num caderno dentro de uma caixa na casa da tua mãe em outro estado. A vida não tem sentido se não for pra dar o salto. O autor da crônica não foi creditado na cerimônia e também não será creditado aqui para mantermos o espírito da época.
Você escuta em tempo real a leitura de um discurso-newsletter de @lovelogy_x, e só três pessoas dão risada da tirada sobre o livro Anna Kariênina. Você é uma delas, apesar de nem ter terminado essa leitura, porque você se lembra de uma conversa com a noiva, essa-mulher-que-está-emperiquitada-e-de-pé-naquele-salto-há-uma-hora-como-é-possível, quando ela falava sobre os lotes e lotes carpidos por Lievin.
A história do Tinder é contada por toda e qualquer pessoa que ousa encostar no microfone. É uma postagem coletiva, cada um com seu ponto de vista sobre o fatídico encontro na Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Quando conheci vocês dois juntos, na sua casa aqui em Curitiba, ele já fazia parte. Como se aquela história do Tinder já tivesse acontecido desde sempre, sendo sempre o início da nossa vida na internet.
A chuva para aos poucos no meio da noite. Os arranjos de flores ensopados na área externa dão um toque sombrio para o caminho do banheiro quando você vai até lá para descobrir que o remédio contra enjoo acabou. Você nem conseguiu experimentar todo o cardápio de drinks. A culpada da vez é a espuma de gengibre. Respira fundo.
Em ritmo acelerado, os convidados vão desaparecendo do salão. O serviço de logística reversa devolve todas as pessoas usando chinelos de casamento para um ponto no centro de Curitiba. Você é convencida a pegar um livro da prateleira de romances e fica com um exemplar de O diário da princesa. A última música de que você se lembra é a mesma que embalou o coral de swifties na finaleira da despedida de solteira. O sol nasce. Você vê os noivos descendo até o píer. É a última cena que você vê antes de dormir.
outras doses
#178 Queria ser grande, mas desisti: “Livros difíceis. Por que ler? Enfrentei a pergunta algumas vezes, vinda de pessoas que me viam carregar por aí Ulysses e O som e a fúria.”
O acúmulo da vida sem registro: O jeito é assinar a newsletter de Estela Rosa pra não perder edições tão bonitas como a que eu queria recomendar por aqui -- [registro 8] vinte e quatro de janeiro de dois mil e vinte e dois).
cabelo-nuvem: Hourly Comic Day/2022 -- “Um quadrinho para cada hora do dia! Mesmo que nada aconteça! Viver e desenhar, é possível?”
saideira
Estou lendo: Temporada de huracanes, da mexicana Fernanda Melchor. Cada capítulo apresenta o fluxo de pensamento de um personagem importante para entendermos o assassinato que acontece numa cidade de interior. Do tipo de livro que você abre com calma pra não ter que largar de repente, até porque os capítulos não são divididos em parágrafos. Uma leitura que está me deixando com vontade de seguir lendo autores latinoamericanos. Aceito recomendações de escritores mexicanos.
Pois é, as pessoas ainda se casam... Gostaria, humildemente, de recomendar Como Água para Chocolate, da mexicana Laura Esquivel, um dos meus livros favoritos da vida e Tender Is the Flesh, da argentina Agustina Bazterrica, que me fascinou demais e também entrou na minha lista de favoritos, ainda me pego pensando sobre as questões que ele traz :)
Ai como é bom te ler, amiga Luisaaaaa <3